Monday, December 31, 2012

"A vida vem em ondas"


Desde os dez anos que escrevo algo no dia 31. Sério. Considero uma data importante, pois além das comemorações é um dia em que a gente acaba fazendo uma espécie de avaliação do que nos aconteceu e das nossas atitudes, é meio inevitável. Pelo que me lembro, sempre dei um jeito de encerrar o meu texto com alguma mensagem de esperança e não creio que esse ano vá ser diferente.
Comecei 2012 ganhando a possibilidade de cuidar melhor da minha saúde de um jeito muito especial que mais me parecia um presente divino. Logo no início, fui ao Rio de Janeiro e fortaleci ainda mais uma amizade com alguém que entrou na minha vida pelo trabalho e se instalou pelo afeto.
Foi o ano em que consegui, finalmente, retornar à Paris e, talvez, por isso mesmo, pelo menos até outubro, nenhuma coisa ruim de fato me atingiu. Passei por momentos chatos, claro. Encarei pessoas inconvenientes, óbvio. Falta de grana? Alguma dúvida? Porém, em todos esses momentos, eu estava lá, concentrada, pensando que no dia do meu aniversário estaria na cidade luz, falando uma língua que amo e, dessa vez, de lambuja, com a minha irmã, meus dois sobrinhos e amigos. Não dava para ter “tempo ruim”. E não é que com isso o dia-a-dia ficou mais interessante?
Fiz novos e especiais amigos. Fui chamada para fazer pequenos trabalhos ligados ao teatro, comemorei com muita conversa e risadas vários momentos com as pessoas que amo. Ah, fiz muitos almoços, jantares, comidinhas especiais por puro prazer de reunir as pessoas em volta de uma mesa. Acompanhei a compra da casa nova de minha irmã e produzi, com a minha irmã e a minha mãe, vários materiais tentando levar as pessoas um pouco mais de conhecimento. Em troca, muitos elogios ao meu pai, criador dos jogos da família, muitos agradecimentos por esses produtos existirem. Surgiram trabalhos inesperados,  assim como continuei fazendo outros em que posso perceber o que aprendi até agora.
Fui a Buenos Aires, apresentar minhas ideias. Venci meus medos de falar em público e até em outras línguas, vejam só...Vi trabalhos artísticos lindos, outros de muita garra. Andei pelas ruas da minha cidade, de outras cidades, em outros países. Segui fazendo natação e reduzindo assim minhas ansiedades e, sempre que algo me tirava do meu equilíbrio, logo logo encontrava um amigo para me tranquilizar, para mostrar que a vida era muito mais do que aquele momento e que sim, o que quer que fosse ia passar. E passou. A prova está que chegamos ao final do ano.  E há poucos dias lá se foi uma pessoa que sempre teve muita importância na minha vida, mesmo quando distante. A simples lembrança dela era capaz de me fazer sorrir, de me confortar. Mas eu me nego a ficar triste. Me emociono, de vez em quando, claro, mas eu e ela sempre soubemos que a vida é efêmera e que como 2012 passa muito rápido. Tão rápido que só me instiga a continuar com essa urgência de viver, de me concentrar nas coisas boas, a dar valor para o que realmente importa e a continuar tentando ter cada vez mais gente que dê valor a cada minuto por perto. E por incrível que pareça o ano está terminando cheio de perspectivas de que eu não vou querer isso sozinha.  Que 2013 seja um ano de mais encontros e de reencontros. 

Monday, December 03, 2012

Palavras que estremecem, cenas que transformam o espetáculo da vida



Não sou dessas pessoas que se apaixonam pelas palavras, mas “estremeço” tem uma sonoridade que me agrada e que me atraiu para ver o trabalho da Cia Stravaganza mesmo mantendo o hábito de não ler nada a respeito para não estragar a surpresa. Assim, desde o primeiro momento, fiquei em suspensão ao ouvir cada parte daquele texto curioso, enigmático, profundo. Não demorou muito para surgir uma sensação de prazer, de alívio, por constatar mais uma vez a força do teatro em traduzir o que nos angustia, o que está em nosso pensamento, o que faz parte do nosso dia-a-dia. Porém, não de um jeito mastigado, liquidefeito, mas instigante e desafiador.
Precisava ser um grupo como esse para trazer ao palco o texto de Joël Pommerat, esse francês que descobriu, desde os 12 anos, que era o teatro que lhe interessava. Essa paixão está em cada palavra. Todas as dúvidas de quem se interessa pela arte, de quem não deixa a vida passar em vão, de quem quer ir ao fundo de todas as questões da existência e que volta ao começo, busca as origens, tentando resgatar um otimismo, uma razão e esbarrando tantas vezes no vazio, no susto, no medo, mas mantendo ainda assim o humor, me levando a uma disputa entre manter a atenção no palco e ao que cada cena me provocava.
Dei muitas risadas nos espetáculos anteriores do Stravaganza. Admirei o trabalho de Rodrigo Mello quando o vi pela primeira vez e segui apreciando as atuações dos meus amigos Lauro Ramalho e Sofia Salvatori. Dessa vez, tenho ainda o prazer de rever Adriane Mottola em cena. De fixar meu olhar em Cassiano Ranzolin que tem uma energia magnética. De sentir medo do personagem de Duda Cardoso durante todo o tempo e de me impressionar e divertir com a multiplicidade de Janaina Pelizzon. Todos expressivos e intensos.
Enquanto os assistia me perguntava o que era criação do grupo, o que o autor havia definido e vislumbrei uma semelhança ao pouco que conheço dos textos de Heiner Müller, em que tudo fica para ser pensado por quem decide encená-lo, sejam os atores, ou o diretor. Devo dizer que não tenho facilidade em identificar as habilidades desse último. Não sem conhecer o processo. Não quando ele acerta. Nesse caso, ela: Camila Bauer. Porém, um amigo tornou isso muito claro ao explicar que, mesmo que as escolhas das ações, do cenário ou de qualquer outra coisa em cena não seja da diretora, ela tem que aprovar. Afinal, é o seu nome que vai “assinar” tudo isso. E em Estremeço existem momentos muito especiais, audaciosos, mostrando que ainda não vimos tudo que é possível no teatro. Fernanda Petit  dando seu texto em um microfone no chão é um desses e existem muitos outros. Também observo que quando não há nada a excluir, quando há uma precisão, isso é mérito da diretora.
Além disso, ao verificar que Elcio Rossini assina a cenografia já não me espanta que tenha visto pernas de aranha no que deveria ser uma cortina, de me surpreender com os artefatos que traziam e levavam os atores e, embora Naray Pereira seja um nome novo para mim, não posso deixar de falar do figurino que me parece absolutamente impecável.
Estremeço prova mais uma vez para mim que arte é literatura, arte é comunicação, arte é psicanálise e sintetiza isso tudo ali, naquele palco. Resume todas as discussões filosóficas em pouco mais de uma hora de uma forma contundente, impactante, mostrando o quanto o teatro pode revolucionar por fora e por dentro. A sensação de sair do teatro diferente de quando entrei me garante que nesse mundo tão caótico em que vivemos é a arte que nos manterá vivos no sentido mais profundo dessa palavra. E por falar nisso, tem horas (não muitas), em que o português consegue ser mais belo que o francês. Assim, “Je tremble” passou a ser “Estremeço” cuja palavra soa aos meus ouvidos de uma forma muito mais intensa causando sensações que só quem viu o espetáculo pode sentir.  Estremecer significa fazer tremer, abalar, sacudir, causar medo. Esse espetáculo faz tudo isso e vai além.

Saturday, November 24, 2012

Randevú com o homem que mudou a minha vida


Nem sei se o que tenho para dizer do espetáculo de Zé Adão Barbosa vai servir de alguma forma. Mas ficar tentando verificar a utilidade das palavras me parece ainda mais inútil quando se trata de arte. Não li os comentários sobre o espetáculo Coração Randevú. Tive medo que me tirassem as surpresas, interferissem em minhas próprias impressões. E foi assim que cheguei a Casa de Teatro para ver o meu mestre.
Confesso que não há coisa melhor do que ver alguém que a gente admira atuando. Nem pior. Ainda essa semana, comentava que simplesmente detesto o “compromisso” de ter que gostar das coisas. Essa é uma palavra que traz junto uma carga, um peso, um desagrado. Fui ver o Zé porque queria, porque desejava ver em cena nem que fosse uma pequena parte de tudo que aprendi com ele, pois muito antes de dar importância para o seu trabalho como ator, diretor, eu o conheci como professor.
Já contei outras vezes que foi, por acaso (se é que isso existe) que fui parar no teatro, levada por uma colega de trabalho que iria começar uma oficina com ele. Ela desistiu. Eu me apaixonei.  E, hoje, só posso pensar que tenha sido essa paixão comum que fez ele me acolher, me entender, me incentivar. Assim, no final dos anos 90, passei a ver Zé Adão Barbosa todas as semanas durante três anos. E não só a ver. Mas ouvir, entender, visualizar cada gesto, cada palavra, cada movimento. E nunca foi chato, nunca foi repetitivo, nunca foi rotina. Ao contrário, o compromisso da aula me fazia pensar por que fazia aquilo, mas não houve um só dia que não saísse feliz, cheia de energia e de vontade de sugar a vida. E é isso que vemos no espetáculo. Essa intensidade, essa garra, esse desvario que persegue todo o artista.
Disse para o Zé, ao final do espetáculo, que chorei todo o tempo. E ele disse que é porque é um espetáculo que mexe com a memória. E ele não está errado. Mas é porque trazia a minha lembrança a importância de tê-lo conhecido. De já saber de algumas histórias que ele traz para o palco. Pela emoção de ter compartilhado algumas em minha própria casa e por lembrar quem eu era antes e depois de tê-lo conhecido. De voltar a sentir a emoção de vê-lo inteiro, expressivo, exposto, escancarado ao contar a sua vida, ao mostrar como é possível tratar as palavras de forma tão diferente só com a mudança de timbre, de intenção. Tal qual aquela vez em que ele provou por A + B que podíamos dizer “nuvem” com leveza e alegria como também com pesar, bastando para isso imaginar que essa impediria uma ida à praia. Ou a tantas outras em que, acrescentando um “detalhe”, ele fazia crescer, impactar a ação de um ator e foram tantos aprendizes que hoje estão por aí...  
Bem, mas tudo isso pode ser muito pessoal e não convencer ninguém de que Randevú merece ser visto.  Mas isso só para quem acha que Fernando Pessoa não tem nada a nos dizer, quem não se interessa por poesia, por música, por reviver tudo o que nos faz sonhar. Para esses não há encontro possível. Zé Adão leva para o palco o que ele é, o que ele sabe, o que ele não sabe, com a delicadeza e a firmeza que passou pela mão de Patrícia Fagundes e que enfrentou as dúvidas, as certezas, as inseguranças desse artista, a quem eu só posso agradecer pelo resultado, não só do trabalho mas pelo que sinto ela fez pela sua alma.
Minha vida se divide entre antes e depois de cruzar com Zé Adão Barbosa no meu caminho. Permitiu-me resgatar todas as coisas que sempre tiveram valor para mim, provocou uma descoberta da minha essência.  Depois do Zé, fiquei ousada, corajosa, sedenta. Dei destino a minha sensibilidade que, até então, tanto me atrapalhara. Assim, nada melhor do que voltar a ver agora esse homem em cena. Esse que considero meu amigo. Amizade que deixava meu pai, cuja relação fora sempre tão difícil comigo, orgulhoso. Que também impressionara minha mãe, meus sobrinhos (que também foram seus alunos), meu irmão (que já sei foi), ou seja, minha família. Que passou a ser para ele: os Mello, sempre tratados com a delicadeza que ele teve ao entregar a rosa do final do espetáculo para a minha mãe.  Esse é o meu eterno professor, o homem que mudou a minha vida e que, em cena, provocou emoções que só podiam me levar às lágrimas. 

Tuesday, November 13, 2012

Um por todos e todos por Plauto Cruz. E quem pela arte brasileira?


Foi pelo Facebook que fiquei sabendo que Plauto Cruz precisava de ajuda e não estava bem de saúde. Foi também pela rede social que recebi a informação de que os artistas haviam se mobilizado para fazer um show cuja arrecadação seria destinada a ele.  As duas coisas me sensibilizaram de um modo especial.  Afinal, mesmo não sendo tão musical quanto eu gostaria, esse músico entrou em minha vida há uns 30 anos, quando Ricardo Silvestrin me informou sobre suas apresentações no Vinha d’alho, cujo nome só identifiquei quando citado hoje no show.
No programa, 30 músicas previstas. Alguns nomes que eu conhecia muito bem, outros nem tanto. A plateia lotada. Confesso que os primeiros quatro nomes eu não conhecia. Já as músicas... Em 3º lugar, Darcy Alves cantou “Esses moços” e mesmo esquecendo em alguns momentos parte da letra, sua voz e sua interpretação, receberam fortes aplausos. De mim, em pé. Tem sido fácil me emocionar ultimamente.
Cristiano Quevedo cativou a plateia com o seu refrão “Eu te espero, meu coração, vem dividir comigo o chimarrão”. Logo em seguida, Renato Borguetti, mesmo dizendo que não era muito de falar, conta que teve o prazer de dividir o espaço muitas vezes com o homenageado na Cia de Sanduíche, já que morava em frente. No palco, ele mistura piano, violão, flauta, gaita e parece se divertir. Faz um verdadeiro diálogo com as notas, o que parece explicar porque ele não é apenas mais um gaitista. O Clube do Choro também não faz feio e tudo parecia bem até Plauto Cruz aparecer no palco.
Em uma cadeira de rodas, surgia o homenageado, visivelmente debilitado. Já vi minha irmã, que foi ao show comigo, em uma cadeira de rodas depois de ter sido atropelada e convivi com meu pai debilitado por uma doença cardíaca, mas ali o Plauto era o foco. E nem Claudio Britto (um dos apresentadores além de Tânia Carvalho e Juarez Fonseca), nem os aplausos, nem o pessoal da emergência de prontidão, conseguiu minimizar a agonia de vê-lo tão de perto tentando ajustar o microfone ou tocar sua própria flauta. No início, todos apenas aguardavam enquanto ele dizia: “surgiram alguns imprevistos, mas não é nada”. Mas não demorou para que suas tentativas se mostrassem totalmente improdutivas.  Enquanto isso, as pessoas comuns e a imprensa faziam fotos e filmavam. Por alguns instantes me vi a favor da censura. Qual a necessidade daqueles registros?  Doía em mim as tentativas de Plauto de tentar se comunicar ou soprar a flauta.  Minha vontade era subir no palco e protegê-lo, segurar a sua mão, passar a mão na sua cabeça. Onde estavam, afinal, seus amigos? Ninguém podia tentar ao menos ouvi-lo? Só posso imaginar que ele fizera questão de estar ali e que aqueles que lhe são mais próximos sabiam o quanto era importante deixá-lo tentar fazer o que pretendia. Finalmente, Britto tomou a atitude de pedir palmas e alguém, que acredito ser da sua família, pouco depois, recolhia a sua flauta. Finalmente, os paramédicos o retiraram do palco. Ainda ouvimos Plauto dizer: “não era isso que eu tinha planejado”. Ele argumentara que a flauta não estava funcionando, que o microfone não estava bom, mas sua fragilidade parecia a explicação para tudo, tivesse ele ou não razão já que tantos outros músicos reclamariam de algo parecido depois.
Creio que só consegui começar mesmo a me recompor quando Rafael Ferraz disse que Plauto havia mostrado que a musicalidade ainda existia em seu coração que, segundo ele, aliás, é onde aparece pela primeira vez em qualquer músico. Até ver e ouvir Ivone Pacheco, minha cabeça ainda fervilhava com essas imagens. Depois, Lucio Yanel apresentou  El Condor Pasa não sem antes dizer que, durante os 26 anos nos quais morou em Porto Alegre, esteve pela noite próximo de Plautinho, como o chamavam.  E o clima de celebração foi ressurgindo com a interpretação de Noites Cariocas, do grupo liderado por Luiz Machado, com Feijão no pandeiro. O destaque para esse último vem por conta do fato de que eu o conheço. Já quase fizemos um trabalho juntos e sei da sua ligação profunda com a música e seu jeito divertido, o que deve justificar ele continuar exatamente igual há anos quando nos encontramos pela primeira vez. Além disso, é nessa hora que eu fico sabendo que as músicas do Plauto foram registradas por escrito pelo líder do grupo, o que, sem dúvida, é algo vital para todo e qualquer músico. “Eles são os que mais se divertem”, disse a minha irmã, se referindo aos músicos.  O que me fez pensar o quanto isso também é válido para o teatro. Creio que, na verdade, para todo e qualquer artista. 
Bem, e aos poucos, vários artistas foram desfilando pelo palco do Renascença em homenagem a Plauto Cruz. Dizendo palavras carinhosas, de reconhecimento pelo seu talento, pela sua generosidade, sua genialidade. Vi gente tocando violão de um jeito quase divino. Não fosse a necessidade de ter que ajustar os instrumentos a cada apresentação, aquelas vozes e notas pareceriam toques de mágica. Porém, o trabalho incrível dos assistentes de palco eram registros concretos das necessidades técnicas que um show com tantos artistas, tantos talentos exige. E um único holding fazia quase todos os ajustes, demonstrando que entendia de todos os instrumentos e ainda era capaz de se comunicar com os demais apenas por sinais. E assim, seguiram-se as horas em que cada artista, por instrução da produção do espetáculo, foi contando qual o seu vínculo com o homenageado, alguma história que os ligava, o que tornava tudo mais interessante e não deixava nenhuma dúvida da importância desse para a música não só do Rio Grande do Sul, nem do país, mas, simplesmente, da música. Houve mudanças na programação, estabelecida por Pedrinho Figueiredo. E foram muitas apresentações, muitas histórias de todos os voluntários que se engajaram nessa ideia provocada inicialmente por Graça Garcia até chegar a outro músico que também faz parte da minha lembrança de uma mesma época em que eu começava a ganhar a minha independência e sair por aí. Foi a vez de Nelson Coelho de Castro que cantou Cristal 753 e explicou que, quase sem querer, fez a escolha dessa música que era o seu endereço de uma casa no bairro onde eu moro hoje e onde Plauto havia estado. Diferente dos demais, confessou que, às vezes, se irritava com o flautista que atendia a todas as súplicas da plateia para que tocasse alguma música, “o que ele fazia a cada vez melhor, com uma generosidade que o faz um baluarte da cultura de Porto Alegre, um patrimônio da cidade”. Nelson encerrou sua participação dizendo: “Salve Plauto para sempre”.
E de resto foi tudo muito lindo, muito emocionante, muito bem pensado pelos organizadores e pela Secretaria Municipal de Cultura, permitindo que Hique Gomez mais uma vez mostrasse o seu talento ao se apresentar com uma banda formada nos bastidores.  Porém, não posso deixar de concordar com um dos meus poucos amigos músicos, Marcos Ungaretti, que nunca, jamais um artista, quanto mais no nível de Plauto Cruz, deveria ter que chegar ao ponto de fazer um show beneficente a si próprio.  Enquanto a cidade e a imprensa discutem a Copa do Mundo de 2014 e as obras dos estádios, os músicos, em geral, seguem sem espaço para mostrar os seus talentos e sem condições de manter uma vida digna, principalmente, se o corpo não lhes permite continuar fazendo aquilo que mais sabem: arte. Nesse espetáculo tão especial, em tantos sentidos, tive orgulho de ser gaúcha. Tive vergonha de como tratamos nossos artistas. Queria ter apenas chorado com o choro da flauta de Plauto Cruz, mas foram lágrimas reais que molharam meu rosto nessa noite.

Saturday, October 06, 2012

Meus pais nunca me disseram: “eu te amo”


Como todo mundo que se interessa por psicologia, psicanálise, psicoterapia, acabei analisando as atitudes dos meus pais na busca de explicações para coisas que aconteceram comigo. Passei anos (que pareciam infindáveis) com problemas de autoestima. Embora já tenha ouvido pelos parentes que, desde pequena, era extrovertida, falante, engraçada, minha adolescência me levou, como geralmente leva, a crises profundas, revoltas, vontades que iam, desde sair de casa a morrer, desaparecer da face da terra.
Sim, eu me lembro de me sentir sozinha antes disso. Por alguma razão, eu estudava em períodos diferentes das minhas duas irmãs e do meu irmãos e ficava com as auxiliares em casa enquanto os demais iam com os meus pais professores para a escola. Houve outras circunstâncias semelhantes. Depois o sentimento de solidão tinha mais a ver com o fato de não ser compreendida. Eu me sentia frágil, carente, quase todo o tempo. Meus pais haviam sido criados por pais determinados, batalhadores, de boa índole, amantes da ética e dos bons costumes. Associado a isso, vinha uma ideia de que se estivéssemos limpos, saudáveis, alimentados era suficiente. Não para mim. Eu queria mais. Só não sabia exatamente o que, nem como. Mas achei que precisava buscar fora da família.
Talvez, por isso, já aos dez anos tenha me apaixonado por um colega de classe. É claro que era platônico. Não, nunca me declarei. Acho até que ele nem sabia. E aos 13 engatei em um namoro com outro. Foi quando disse “eu te amo” para alguém pela primeira vez. Ah, e ouvi também. Mas era tudo muito conturbado. Eu não me amava como alguém poderia me amar? E o que eu devia fazer para sentir esse amor, acreditar nele? Isso gerou muitos conflitos, a partir dos 18, quando não bastava ser bom moço para me interessar e outros começaram a me querer também.
Nos últimos dias, me peguei, pensando que, só recentemente, tenho ouvido, com mais frequência: “eu te amo”, dito pelos amigos. E eu acabo duvidando, achando exagerado e não raro vem àquela vozinha: “me ama porque não me conhece direito...”. Em seguida, percebo que isso é falta de prática em ouvir essas palavras. Não posso dizer que faz muitos anos que não digo. Vez por outra, faço uma força e deixo as palavras saírem, sempre pensando que se ficar evitando, um dia, poderá ser tarde demais. Não é fácil. Afinal, demorei muito tempo para valorizar o amor que recebi dos meus pais mesmo sem eles saberem como expressar isso e acredito que, numa atitude defensiva, passei a dar muito valor aos gestos, ao comportamento e menos a essas palavras. Outro dia, pensava nisso enquanto segurava o meu cachorro doente dentro do banheiro em uma tentativa de “nebulização” para ajudá-lo a sair da crise respiratória em que estava. Se não fico dizendo que amo pessoas, nunca digo que amo meus bichos, mas sempre me esforcei para mantê-los limpos, alimentados e saudáveis. Será que basta? Bem, me acostumei a achar que sim, mas se fosse totalmente verdade, por que me vem uma tristeza, uma melancolia quando algo me traz à memória meu passado, uma época em que eu, não só amava, como amava demais. Era bem sofrido. Então, por que essa saudade? Acho que é da esperança de encontrar alguém para me dizer: “eu te amo”. 
Daqui a alguns dias, faço 50 anos. Já está mais do que na hora de voltar a dizer “eu te amo” novamente. 

Saturday, September 29, 2012

Intocáveis: o luxo de uma relação improvável


Muita gente comentando sobre o filme Intocáveis. Deixei o tempo passar sem escrever nada, mas acabei tendo vontade de registrar algumas impressões. Porque não é sempre, não tem sido tão constante como eu gostaria, ter algo que me motive como nesse caso.
Primeiro: não gosto da cena inicial. Por quê? Bem, porque  é uma enganação de uma situação crítica, de emergência. Um trote. E essas coisas nunca foram do meu agrado. Porém, é uma cena incrível, muito significativa. Nela já reside a cumplicidade dos dois personagens principais, na maneira como eles encaram a situação terrível em que se encontra um tetraplégico. E é ela que já começa a nos dizer que não se trata de uma história para sentirmos pena. Nisso reside a maestria desse filme.
A fotografia do filme é linda. Não é escura. Não trabalha com tons de desgraça, tristeza, pesares. O fato de um dos personagens ser rico e quase todas as cenas se passarem nesse ambiente de luxo fica impressionando nossos olhos e, pelo menos para mim, saber que eles estão em Paris também reforça essa sensação. Porém, não é isso o verdadeiro valor dos Intocáveis. Ao contrário. É o olhar que eles fazem para dentro de si mesmos, e entre eles, que nos toca. Além disso, o filme mantém, na maior parte, um tom cômico. As coisas mais graves e dramáticas aparecem de forma levemente engraçada. E sem que percebamos estamos rindo daquele corpo inerte, daquela incapacitação. Por sadismo? Não. Mas porque o filme consegue nos passar que não é somente naquilo que se restringe o protagonista. Talvez fosse antes de ele estabelecer a relação com seu cuidador que é o verdadeiro foco. E por que ela se estabelece? Pela necessidade. De ambos. Coloca a desigualdade social em paralelo com a incapacidade física. De certa forma, ambos carecem de mobilidade. E a medica que a relação deles vai se aprofundando, as cenas vão sendo apresentadas como sopros de vida, nas duas vidas. E nós podemos sentir o afeto crescendo e trazendo expectativas para os dois.
Não há nada de patético. Eles se divertem e dançam, trocam confidências. Entre carros de luxos, ambientes incríveis e críticas ao mercado da arte, os dois atores nos encantam com suas performances que são devidamente reforçadas por todos os demais personagens do filme que seguem a mesma forma de atuar em que olhares e sorrisos dizem mais do que todas as palavras. Aliás, tirando raros momentos de conversas mais longas, o filme explora de modo perfeito pequenos gestos e expressões.
Nenhum aspecto é esquecido. Sexo, morte, drogas tudo é trazido à-tona sem discursos moralistas nem lados fúnebres. São temas que vão aparecendo aos poucos, na medida em que a relação se intensifica. Assim, enquanto tanto se fala em acessibilidade e inclusão social, os Intocáveis dá uma aula, mostrando que não são apenas rampas e portas que farão com que qualquer pessoa que tenha algum problema físico ou interior se sinta pertencente a algo. É preciso troca. É preciso atenção. É preciso ver no outro tudo que ele é além da sua incapacitação. O filme faz isso parecer fácil e saímos dele mexidos com tanta sutileza, com tanto sentimento. Saber que se trata uma história verídica só valoriza a força dessa obra que soube captar de maneira genial esse relacionamento improvável.  Creio que é por tudo isso que ninguém sai do cinema intocado. 

Thursday, September 20, 2012

“Hay que endurecer-se pero sin perder la ternura jamás”*



É lúdico, é crítico, é poético, é técnico, é genial. Antes de sair, tentei ver quanto tempo tinha para pensar na logística da volta. Não encontrei Fuerza Bruta entre os espetáculos. E não é à toa. Ele está na lista de shows e foi programado para ser apresentado no Pepsi on stage, onde eu nunca tinha ido antes. Não podia ter feito uma estreia mais perfeita. Voltarei a esse local, mas, dificilmente, verei algo melhor. Se bem que quando se trata do Porto Alegre em cena, e do que Luciano Alabarse é capaz de trazer a cidade, é melhor não dizer isso.

Fui sozinha e não lembro quando foi a última vez que fui aos espetáculos sem ver na plateia as caras de teatro. Mas é isso que o festival faz além de incluir diversas faixas etárias e muitas “tribos”. Do salto alto a cabelos roxos e tatuagens. Sem lugares marcados, em um espaço enorme, as pessoas iam chegando sem saber muito onde ficar e havia uma inquietação, um burburinho e uma tentativa de disputar o melhor lugar mesmo sem saber onde seria. Entretanto, assim que somos induzidos a entrar isso já não faz o menor sentido. Durante todo o tempo o foco é mudado de lugar. Somos levados de um lado para outro, obrigados a fazer um movimento conjunto e não individual e, muito menos, individualista. E a tensão que paira no ar nos faz cúmplices e não tenho dúvidas de que provoca em cada um impressões diferentes. Para mim, a fumaça que começava a preencher o ambiente, enquanto todos olhavam para o alto sem espaço para se mover, lembrou uma cena do filme A lista de Shindler quando os judeus entravam para as câmeras de gás ainda sem saber o que aconteceria mas tensos. Dramático, eu sei. Tem pessoas que acham que comentar ou criticar um espetáculo não tem a ver com dizer o que se sente e o que se pensa sob um ponto de vista pessoal. Eu, porém, em geral, não leio o que os outros escrevem, pois tudo que encontro é uma descrição das cenas, o resumo das histórias, meio que se encaminhando para aquele chiste de quem avisa que o protagonista morre no final. Eu, por outro lado, não sei escrever sobre nada se tiver que deixar de lado minhas impressões. Só fiz isso quando escrevia sobre notícias e não assinava os textos. Hoje, quem me lê já sabe que vai encontrar a minha opinião associada com as minhas experiências. E é isso que o espetáculo significou para mim. Mas, não se engane que tudo possa ser assim previsível. Se você pensa que já viu de tudo, devo dizer que esse show prova que não.

Felizmente, a expectativa nesse caso era mais branda, embora as cenas que seriam propostas nos colocariam em cheque com algo pesado, a imagem da violência e a inutilidade do esforço constante em direção a algo que não se alcança nunca. Mas essa é apenas uma das propostas. Existem outras mais leves, divertidas e que também nos envolvem. E quando você está simplesmente maravilhado com os integrantes do grupo, desejando ser um deles, fazer o que eles estão fazendo, eles se misturam com o público e vão além do anúncio feito no início de que você faria parte do espetáculo. Agora, são eles que fazem parte do público. E eles se arriscam fisicamente embora pareçam estar brincando. E eles mostram a beleza estética do corpo humano em movimento. Isso tudo de forma vertiginosa e com um rigor, uma precisão impressionantes. Ao sair, concluo que, se um dia eu pensei que as palavras nos salvariam da nossa desumanidade, hoje, acredito que é a arte. Creio que serão necessárias outras Fuerzas Brutas.

*Ernesto Che Guevara

Ficha Técnica

Direção artística: Diqui James / Direção Técnica: Alejandro García / Produção: Diego Weinschelbaum / Produção Executiva: Analia Turuzzi e Liz Hood / Elenco: flutuante / Duração: 60min / Recomendação Etária: 16 anos

Monday, September 03, 2012

FITE: Sete dias de arte circulando pelas ruas, pelas veias, pela vida.


Quando tomei conhecimento do Festival Internacional de Teatro estudantil pensei que não poderia acompanhar, pois estava envolvida com outras atividades. Felizmente, acabei sendo convidada pela Coordenação de Artes cênicas para ser analisadora dos espetáculos. Tive uma pequena participação nesse evento que promoveu workshops, palestras, debates, além de claro, dos espetáculos.
Dos quase 40 espetáculos apresentados vi apenas aqueles que comentei. Sete no total. Não vou falar de todos, pois teria muito que escrever e não é tarefa fácil resumir o que significou ver esses trabalhos. Uma coisa que repeti em todas as apresentações foi o meu prazer em ver teatro com tanta gente no palco. Por uma questão de praticidade, de logística, o teatro de hoje tende a ser de grupos menores e, até mesmo, monólogos.  Assim, ver a solução desses diretores para garantir a participação de todos, seja criando núcleos, dividindo funções, mesclando formas artísticas como a dança, a música, a contação de causos... Em quase tudo que vi havia soluções cênicas inteligentes e criativas que exigiam dos atores uma maturidade que superou em muito as minhas expectativas.
Preciso falar também como foi bom ver em prática essa ideia de fazer pensar a arte através das discussões com o grupo e com a plateia. Depois de ter sido mediadora da Bienal do Mercosul, foi ótimo poder fazer isso com  teatro. Por ser uma proposta nova para mim, não sei se fiz certo ou errado, mas não achei que devesse considerar toda a adversidade que professores e alunos enfrentam para chegar aos resultados. Tentava olhar com certa frieza, como um espectador que paga o ingresso e vai assistir a um espetáculo. Sei que isso deve ter parecido muito injusto em algumas ocasiões, mas acabei me tranquilizando ao perceber que, toda vez que fazia um comentário mais crítico, a própria plateia tomava a frente e partia em defesa dos grupos que saiam do palco com muitos elogios e muito reforço para continuar fazendo o que estavam fazendo.
O FITE mostrou o resultado de uma equipe competente que não mede esforços para abrir espaço para as artes cênicas e que sabe enfrentar diversidades e lidar com os imprevistos deste evento que me ensinou novas palavras pelo espetáculo de Isaias Quadros com Eros e Thanatos in Pessoa, me fez saber mais sobre o Rio São Francisco pelo grupo de mineiros, me emocionou com a dura realidade retratada pelo grupo da CESMAR, me mostrou a liberdade da arte na releitura de Giselle em cordel, me divertiu com as histórias do Reino das Névoas e O mágico de Oz. Porém, o melhor de tudo é que não fez isso só comigo. Atraiu um público de estudantes que, em sua maioria, se comportou melhor do que plateias adultas, muito mais acostumadas com teatro. Não havia celulares tocando, fotos sendo tiradas, conversas paralelas. Ao contrário. Silenciosos, respeitosos.
Durante sete dias, houve uma movimentação intensa nas salas teatrais da cidade. Workshops, oficinas, gente trocando experiências, compartilhando conhecimento ou simplesmente fazendo como o menino ruivo que se aproximou de mim e disse: “Muito prazer. Meu nome é Leonardo. Que lindo esse teu anel.” Gentilezas que surgiam do prazer de estar próximo de pessoas que gostam das mesmas coisas, que entendem a importância do “fazer de conta”. Agora, nada foi mais emocionante e me trouxe mais esperanças no futuro do que ver a Dona Hilma no palco totalmente concentrada em suas cenas. Uma senhora de avançada idade, mesclada a um elenco heterogêneo que deixou ainda mais claro porque o teatro me apaixona. Para fazer teatro não é preciso ser alto, baixo, magro, gordo, louro, moreno, branco ou preto, jovem, velho.
Fui para analisar, que em grego significa “dissolver”, para facilitar a compreensão, uma prática utilizada antes mesmo de Aristóteles como um método para a descoberta de fenômenos físicos. Sai dissolvida em poesia, em emoção, em energia, entendendo ainda mais que o teatro é a arte da inclusão natural, onde todos podem tudo e descobrimos o quanto a vida vale a pena se explorarmos ela com coragem até o fim.







Wednesday, August 29, 2012

Um espetáculo para iluminar a alma



Quando eu ainda estava no Departamento de Artes Dramáticas, fui duramente criticada pelos colegas nas redes sociais por dizer que eles eram pretensiosos por quererem, já de início, fazer espetáculos a partir de textos de dramaturgos famosos, clássicos como Romeu e Julieta, as Gaivotas, etc. Ainda penso que certas obras exigem maturidade do ator e não estou falando aqui de idade, mas de experiência, de ensaios, de preparação. Então, foi com surpresa que recebi o trabalho do diretor Igor Ramos em O mágico de Oz, apresentado pelos alunos da Escola Cecília Meireles, no Festival de Teatro Estudantil.
Como diz no programa, livremente adaptado da obra de L. Frank Baum e que já foi montada muitas vezes por grandes companhias internacionais, transformada em filme... Assim, parecia um desafio enorme para estudantes. Não pela capacidade dos professores, mas pelas circunstâncias, horário das aulas, espaços, etc.
Sem cenário, o espetáculo se baseia nos atores que, na mão de uma direção precisa, com as cenas bem definidas e mantendo o essencial da história, deixa tempo para observar o trabalho corporal intenso e, ao mesmo tempo, delicado do espantalho. Algo realmente difícil de fazer e que exige muito da atriz. Também vemos a flexibilidade do “cão” de Dorothy, a menina protagonista que conduz as cenas com segurança e mantém o equilíbrio de todos os demais.
O figurino deixa claro quem eles são e ganha toques especiais na bruxa e no homem lata, ambos divertidos e, enquanto o texto aparece reduzido, cresce a força da cena e os poucos elementos como os sapatos de Dorothy, a corda e o caldeirão da bruxa, a latinha de óleo do homem de lata vão destacando os cuidados desse trabalho.
A plateia, adultos e crianças, entram nesse universo de fantasia em que a luz tem também um papel importante e, quando estamos todos envolvidos, é justamente essa que falta no teatro e deixa todos nós no escuro para frustração, tanto do público, como dos atores. Ninguém quer ir embora. Ninguém quer o cancelamento. Sugiro aplaudir os atores, mas nem isso acontece, pois representaria de fato o fim da expectativa. Subo no palco e cumprimento os atores pelo trabalho. As lágrimas escorrem nos rostos de alguns e molham a maquiagem.  Não tenho dúvidas de que é essa paixão, essa vontade que chegava até nós. A luz volta. Eles também. Resgatam a mesma força cênica de antes e vão até o final. Saímos com um sentimento de conquista, de vitória contra uma adversidade que revela tão “claramente” uma das características mais importantes do teatro: a imprevisibilidade.
Sentada do lado de fora, uma menina vem em minha direção e só a identifico pelo comentário que ela faz. Era o “cão” agora sem maquiagem e sem lágrimas. Creio que ela ainda nem sabe que ser ator é isso, fazer o personagem ocupar nossas vidas e nos transformar por fora, mas, principalmente, por dentro. Logo depois, vem o diretor que fala da sua satisfação em ter visto seu mestre na plateia. Sem dúvidas, o que Igor Ramos apresentou no teatro Renascença comprova que Luis Paulo Vasconcellos conseguiu mesmo repassar seus ensinamentos no curso de direção. Por tudo isso, me vejo pensando que Shakespeare, assim como todos os grandes mestres de teatro foram estudantes um dia e, assim como Dorothy, volto para minha casa me sentindo mais inteligente, como o espantalho, com coragem para continuar buscando um caminho, como o leão, e com ótimos sentimentos, como o homem de lata. Tudo isso provocado pela arte que nos tira da escuridão. 

Monday, August 27, 2012

Sem tempo ruim para bom teatro



Domingo, de manhã, chovendo. Vou ao teatro. Por que? Porque no palco vão estar meus amigos apresentando Fábulas em 4 tempos ou o fabuloso La Fontaine. O espetáculo do Grupo Farsa e Nossa Trupe é dirigido por Marcos Chaves que me convidou para traduzir um filme sobre esse escritor e me puxou para dentro do universo desse francês que escreveu mais de 200 fábulas e desafiou o rei Luis XIV.
Sou a primeira a chegar. Passa pela minha cabeça que, talvez, nem haja espetáculo. Em poucos minutos, porém, as pessoas vão entrando, as crianças... Logo em seguida, aparece Gilberto Fonseca, meu colega de mestrado, que tem uma ligação profunda com o grupo e que, também, ainda não tinha conseguido vê-los. Aliás, entrar no teatro de Arena me faz concordar totalmente com ele: é um espaço que deveria ser mais bem aproveitado. É um local agradável, central e que permite um contato mais próximo com o público.
Não demora o espetáculo começa. Os atores conversam com o público como se ainda não estivessem encenando. Já de cara sou seduzida pela energia dos atores em cena. Plinio Marcos, Ariane Guerra, Lisiane Medeiros, Tefa Polidoro estão à vontade, inteiros, mas não relaxados, quer dizer, eles mantêm as marcações dos movimentos, das falas, gestos, tudo no que eu só posso chamar de capricho e que reflete a mão desse novo diretor. Como plateia me sinto respeitada ao ver eles se transformarem em burro, pomba, leão, raposa, etc sem titubear, sem medo do ridículo. Ao contrário, precisos, convincentes. Esse mesmo cuidado aparece em toda a produção gráfica do espetáculo: programa, cartazes, desenhos que estão à venda no próprio teatro, o que não deixa de ser uma homenagem a La Fontaine que sempre desenhou suas fábulas.
Eu sabia que eles haviam ensaiado várias fábulas e que apenas algumas seriam sorteadas e encenadas, mas a ideia da roleta da sorte para fazer a escolha acrescenta ainda mais criatividade a tudo que já percebemos. O figurino, os elementos de cena, os acessórios são, sem dúvida, um ponto forte. Talvez por isso seis nomes assinem pela equipe de Arte: Marcos Fronckowiak, Maura Sobrosa, Daniel Carvalho, Rafael Araújo, Paulo Cruz, Ateliê GZBL. Resta saber que basta a atriz colocar uma máscara para uma das crianças dizer: “a formiiiga!” Outra imita o movimento que a pomba (Ariane) faz com a cabeça.
O espetáculo segue e eu me divirto com a maneira com que os atores contam as histórias. Esqueço o desafio que foi ensaiar 16 fábulas para apresentar apenas quatro, mas que ainda assim me levam para aquele mundo cheio de fantasia. Um enorme desafio para o grupo com essa proposta deixa em aberto para uma das características que mais aprecio no teatro: o improviso. Previsível, porém, é que a trilha sonora seja tão boa e tão adequada às cenas. Afinal, quem se responsabiliza por essa é o próprio diretor.
 Eu me pego, em um determinado momento, fazendo uma exclamação de surpresa, quando as personagens “deixam cair o leite no chão”. Para mim, essa é a prova de que o espetáculo atingiu seu objetivo de chegar à plateia e que valeu todo o esforço de usar linguagens distintas como do musical, do clown e do teatro de objetos para contar essas histórias, tão ricas de conteúdo, de mensagens que fazem nós, adultos refletirmos e que encantam as crianças.
Só na saída do teatro lembro que chovia. Saio pensando que mais pessoas precisavam ter contato com a arte, que uma visão mais otimista do mundo vem daí. São nesses momentos que deixamos de nos concentrar nas coisas ruins, no lado mal dos seres humanos, nas dificuldades de nossas próprias vidas para como diz uma das músicas do espetáculo “poder sonhar”. Tudo isso tem muita relação com o que o diretor escreveu no programa, onde consta o meu nome nos agradecimentos:  “Será loucura a guia de quem dedica-se à arte? Se sim, que predomine a insanidade do mundo para que o Amor esteja sempre presente”. Considero uma honra ver meu nome associado a artistas que levam a arte tão a sério. Por tudo isso, quem sai agradecida sou eu. E como La Fontaine dizia que textos curtos e interessantes eram melhores do que longos e distantes encerro por aqui, certa de que, realmente, as fábulas tem poder, o poder de ficar na memória. Caminho pela Avenida Borges cantarolando uma música da minha infância de uma fábula de La Fontaine: “Lá vem dona tartaruga, vem andando sossegada. Vou sair da frente dela para não ser atropelada”.

Friday, August 24, 2012

“Quero acabar de viver o que me cabe”



Nada como a música para sublinhar os acontecimentos dos últimos dias e sacudir ainda mais profundamente minha memória. Betha Medeiros me liga e diz: “responde rápido sem pensar muito. Eu tenho dois convites para ver o show da Gal hoje, tu queres?” Até parece que é um teste, pois tenho dito que preciso de um tempo para me programar, não tenho disponibilidade imediata. Mas, nesse caso, não tinha por que dizer não.  Fui poucas vezes ao Bourbon Country. É meio longe, mas a principal razão é que não é um dos lugares mais baratos. Então, essa era uma oportunidade que não podia ser desperdiçada.  Nessas horas, lembro-me do meu amigo e diretor de teatro Nilton Filho que, quando recebe algo de alguém, comenta que deve estar fazendo alguma coisa certa já que mereceu tal coisa. Pois então... é isso que me vem a cabeça. Quem tem amigos... Aliás, poder rever a Betha já era suficiente para mim. Então, lá nos fomos. 
Um pouco antes de entrar, ela me avisa que nossos lugares são na plateia alta e eu digo rindo que, então, vou embora, que ela devia ter me dito antes, etc. Brincadeira, claro, mas se não fosse um espetáculo de música seria mesmo difícil. No início, tudo que consigo ver é a cabeleira crespa de Gal.  Pouca luz, ela de preto, mas a voz, é claro, inconfundível. Estranho as músicas mais taciturnas. Na minha cabeça,  está a imagem de uma Gal meio carnavalesca. Mas não demora muito para ela começar a cantar as canções que me jogam para um passado distante. Vejo-me no início dos anos 80, em meu primeiro emprego como assessora de imprensa na Sociedade Amigos de Tramandaí. Hospedada em Imbé, fazia o trajeto de uma praia a outra todos os dias e, no caminho ouvia muitas vezes: “Eu preciso lhe falar....lhe encontrar de qualquer jeito...” Tendo terminado um namoro de nove anos com o meu primeiro namorado,  é natural que a música surtisse um efeito angustiado que me marcaria para sempre. Talvez, por isso, tenha sido tão bom ver a Gal fazendo ora uma voz grave, imitando Tim Maia, ora a sua própria voz, levando toda a plateia, inclusive a mim, a rir.
Cantando uma música atrás da outra (e foram muitas) fui atirada de volta para o momento presente, enquanto ela cantava “eu vi a mulher preparando outra pessoa...” Imediatamente, surgia na minha cabeça a imagem da minha amiga Daniela Aquino que está grávida do seu primeiro filho. Sempre achara essa frase extremamente forte e poética e agora podia ligá-la a um momento tão real, tão importante e reforçar o meu afeto por essa atriz, mestra, bailarina, professora. Depois (ou antes), foi a vez de lembrar de  um amigo ainda mais antigo que, ao perceber o meu jeito mais prático de ver as coisas, cantava para mim: “Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina...”
E as lágrimas vieram entre uma música e outra e eu ouvia vozes masculinas na plateia gritando “linda” para essa mulher de quase 70 anos, cheia de curvas e via nos seus deslocamentos, nos seus gestos a direção do  meu ídolo Caetano Veloso. Tudo que a deixara tão charmosa e tão cativante, levando um teatro lotado a aplaudi-la de pé, mesmo antes dela fazer o bis e incluir uma música que fazia o elo entre o passado e o presente. Mais precisamente com os acontecimentos dessa semana em que reencontrei meus colegas de comunicação que propuseram que nós deveríamos nos reapresentar. Isso me fez acordar no dia seguinte pensando que deveria simplesmente ter cantado: “Quando eu vim para esse mundo, eu não atinava em nada. Hoje, eu sou Gabriela. Gabriela êee meus camaradas....” Afinal, ilusão pensar que podemos conhecer (ou reconhecer) as pessoas apenas pelo que elas nos contam ou cantam. Mas, devo dizer que, por noites como essa quando "tudo é divino e maravilhoso", ao contrário do autor do poema “Ressuscita-me”, musicado por Caetano, Vladimir Maiakovki  (que de acordo com os registros, se suicidou aos 37 anos) eu ainda quero viver o que me cabe.




Wednesday, August 15, 2012

Em homenagem a Sergio Silva que nos deixa publico um texto que escrevi quando ainda era sua aluna. Ele diz um pouco do que representou para mim o ter conhecido. Ainda essa semana pedi para minha mãe, Dora Mello, fazer um doce de coco para eu levar para ele, pois moramos perto e nas vezes em que veio aqui em casa ele sempre elogiou. Vou sentir saudades...

Sergio Silva é destas pessoas que, em um primeiro momento pode não parecer simpática. Não é dado a sorrisos e não gosta muito de eventos sociais, mas, na medida em que a gente tem a oportunidade de conhecê-lo, começa a se divertir com seus comentários irônicos que vão servindo para estabelecer contato. Aos poucos, vai se descobrindo que, como todo mundo que se envolve com a arte, ele se interessa pelas pessoas.


Gosta de falar e sabe o que diz. Já leu muito, estudou bastante e, hoje, repassa o que aprendeu de maneira interessada e divertida. Gosta de viajar, mas, também tem prazer de ficar no seu espaço, onde pode usufruir algum conforto e dos prazeres de tomar um Whisky, sua bebida preferida, seguida pelo café.

Fuma sem parar e cada baforada deve ser, como dizia Mario Quintana, um suspiro. Sim, porque ele não passa pela vida impunemente. Está atento e angustia-se com o que acontece ao seu redor. Buscou na arte, mais precisamente no cinema como diretor, sua maneira de extravasar isso. Crítico e pontual em seus comentários sobre a cultura, sobre o teatro, sobre a política, é capaz de ir as lágrimas com a cena de um filme.

Avesso às novas tecnologias, não esconde sua falta de habilidade com equipamentos eletrônicos, computadores, entre outros. Às vezes, posiciona-se de forma pessimista diante do futuro e da humanidade, mas isso não o impede de ensinar de forma apaixonada, e sua disposição e paciência para dar aula, demonstram que ele tem esperanças de um mundo melhor.

Apesar de manter sua vida pessoal reservada, é comum fazer comentários sobre sua família, suas tias, seus parentes e, principalmente, sua mãe. Suas críticas divertidas ao seu comportamento são cheias de afeto e amorosidade. Transforma pequenas histórias do cotidiano em situações engraçadas e experiências de vida.

Por essas e por outras, é muito bom que o meu caminho tenha se cruzado com o dele a ponto de eu desejar ser sua amiga, o que acredito esteja começando a acontecer.

Helena Mello – Jornalista

15 de outubro de 2004

Monday, August 13, 2012

Mais do que um diploma, uma conquista para sempre



Assim que fui convidada para a formatura da Isadora Kolecza confirmei minha presença. Ando meio preguiçosa, mas não dava para não participar de um momento desses. Ao contrário de outras pessoas que tem medo de envelhecer, eu gosto de sentir a passagem do tempo, principalmente quando ele representa conquistas. Conheço a Isadora desde que nasceu. Fui a alguns aniversários dela e até hoje comento o delicioso bolo que a sua avó fez em uma dessas datas. Algo, realmente, inesquecível. Minha irmã, Ana Mello, como costuma me fazer companhia e também conhece a família, confirmou que iria comigo. Já minha mãe, tinha recomendações médicas para evitar lugares de muito movimento por mais uns dias. No entanto, na véspera, disse que iria, pois, gostava muito da mãe da formanda, a jornalista Rita Escobar, e queria estar lá nessa hora tão importante para ela.
Já na entrada, a estrutura do Centro de eventos da PUC impressiona, assim como a organização. São muitos profissionais espalhados por todo lugar para orientar os convidados. Mal chegamos, e tivemos o prazer de ver a Isadora, vindo em nossa direção, toda sorridente e de toga. Gentil como sempre, explicava que estava tranquila mesmo sendo ela a oradora da turma. Logo depois, encontrávamos o resto da família, incluindo o meu afilhado Pedro Escobar que quase não reconheci. Já fazia um bom tempo que não nos víamos e já ia longe o menino tímido que havia saído da minha casa. Lá estava um “rapaz”, como diria minha vó, com cabelos cumpridos e todo elegante.
Começa a cerimônia. Cantar o hino em época de Olimpíadas tem outro sabor. Por alguns instantes, sintonizávamos com aquele momento de orgulho do nosso país. Alguns outros procedimentos mais formais e começava a entrega dos diplomas. Magda Cunha, minha contemporânea da época em que cursei jornalismo, presidia o evento e fiquei imaginando como deveria ser prazeroso saber que ela contribuíra para aquele momento que, como ela mesmo disse depois, é um fim, mas também um começo. E, assim, a obrigação de repetir as mesmas palavras tantas vezes  deveria trazer uma gostosa satisfação interior.  
Ver a cerimônia me fez lembrar que havíamos escolhido o jornalista Marx Leonam para ser o nosso paraninfo e que eu nunca havia buscado as fotos da minha formatura. Na época, resistia às formalidades e não fiz questão de ter esses registros. Hoje, me arrependo. Gostaria de ter essas fotos. Lembro que o fotógrafo guardava as fotos por cinco anos e durante todo esse tempo eu de vez em quando lembrava que deveria ir buscar alguma, mas nunca o fiz.
Carlos Kober, entre outros professores da minha época também vieram a minha mente. Assim como colegas como a Rosangela Batistella e o Humberto Trezzi com os quais voltei a ter contato, pelo menos virtual.  Enquanto outros nomes iam sendo chamados, eu recordava o jeito da Rosangela sempre muito lúcido de argumentar, sempre compenetrada em todas as tarefas e das discussões que tinha com o Humberto em sala de aula,  pois ele era muito mais politizado que eu, mas assim mesmo eu insistia em defender meus argumentos. Refleti o quanto isso havia me auxiliado a desenvolver esse jeito de dizer sempre o que penso.
Houve, também, momentos emocionantes como as entregas dos diplomas por familiares que já haviam feito a mesma formação como no caso da Rita que entregou o canudo para a Isadora. Fiquei emocionada, com os olhos cheios de lágrimas, imaginando a importância que isso tinha para a Rita já que eu a conhecera no início da sua vida profissional.  Chamou-me a atenção, porém, como poucas pessoas escolheram músicas brasileiras para a hora da entrega e como todos (e era uma turma grande) eram bonitos, tantos os homens quanto as mulheres e jovens, é claro!
O discurso da Isadora e do seu colega teve sempre um toque divertido, mas, ao mesmo tempo, respeitando o significado daquela etapa. Comentaram sobre um professor que havia deixado claro que o termo marketeiro não deveria ser usado e fizeram ironias sobre o fato de que “publicitários não comem, degustam, não pensam, têm insights”, etc. Conscientes de que estavam vivendo o final de uma etapa, destacaram a passagem do tempo, lembrando que quando entraram ali a palavra “ideia” ainda tinha acento, bem como outros fatos ocorridos durante aqueles anos de faculdade e ressaltaram o poder do comunicador de influenciar outras pessoas. Fizeram um paralelo entre o desconforto de quando chegaram e o de estar saindo e brincaram com o fato de agora já poderem ter seus próprios estagiários.
Os demais discursos foram breves, o que, para mim, já significa que não se passa por uma faculdade de comunicação em vão.  No mínimo, aprende-se que não é a quantidade de palavras ditas que importa, mas a qualidade delas e somos treinados a editar o que queremos dizer para criar potência ao que é dito, transmitir o que queremos sem perder o interesse da plateia para qual falamos. Assim, o paraninfo da turma também fez um discurso que, mesmo repetindo palavras previsíveis como estar feliz e orgulhoso, soube reforçar o principal ao dizer que o bastão que eles recebiam ali significava uma conquista e que eles deveriam evitar de parar de estudar. Disse também que a medicina criou muitas próteses, mas nenhuma para a alma e fazendo uma citação disse que “só se descobre novos mundos quando não se vê mais a costa”.  
Gostei de ver que, além da entrega do destaque para o aluno com melhor rendimento, foi entregue também um para o aluno mais solidário, dando valor não só a pessoa com melhores notas, mas também aquela que se mostrou mais amiga dos colegas, mais presente. E, tive a prova de é a mais pura verdade que, aqui no sul, as pessoas cantam com mais entusiasmo o Hino Rio-grandense do que o brasileiro.
Assim, depois de abraçar a mais nova publicitária do mercado, voltei para a casa ainda vibrando com o sentimento de que o passado e o presente haviam se interligado e que, como dizia Pierre Bourdieu, somos resultado de todas as nossas experiências, de tudo que vivemos e de todos que encontramos em nosso caminho, reforçando o que o paraninfo tinha dito: “ninguém pode nos tirar o conhecimento que adquirimos”. 

Monday, July 02, 2012

Just do it




O convite para ir ao teatro partiu da minha irmã Vera Mello. Isso porque a vida, mais uma vez, criou um elo inesperado. Rodrigo Scalari, que foi meu colega na universidade de Artes cênicas, se transformara em aluno dela.  Eu já tinha visto comentários muito favoráveis sobre esse trabalho dirigido por Marco Fronchetti no Facebook onde também li as manchetes de uma crítica na ZH e de Antonio Hohlfeldt no Jornal do Comércio, ambas também aplaudindo o espetáculo.  Fiz questão de não lê-las antes para não deixar interferir na minha impressão.
A fila da sala da Álvaro Moreira mostrava que palavras, sejam as dos críticos ou do boca a boca, ainda funcionam e atraem até quem não tem o hábito de ir ao teatro ou não gosta muito do que vê quando vai. Para mim, aquela capacidade de fazer de conta que aparece desde o início no espetáculo Do It é mágica. E, enquanto vejo, me divido em duas. Uma que se encanta com a delicadeza de cada gesto dos atores e outra que fica ali se perguntando o que leva aqueles adultos a estarem ali fazendo papel de crianças? De alguém que tenha dificuldade de entender o que é a arte.
No palco, cheio de caixas transformadas em cenário, reconheço cenas de algumas práticas teatrais que já fiz e que, por isso mesmo, dou valor. Sei como é difícil chegar aquele resultado, tão limpo e tão expressivo ao mesmo tempo. E me vem à tona um título que tenho a impressão de já ter usado antes: a sofisticada simplicidade. Porque é isso. No roteiro do espetáculo não há nada de mirabolante. Nem nos gestos, nem nas falas. Nem mesmo no figurino de Rô Cortinhas que, parafraseando Fernando Pessoa, “não exagera, nem exclui.” Muitos outros espetáculos já apresentaram histórias parecidas e a questão do teatro que fala de teatro (a famosa metalinguagem) não é novidade. E, no entanto, o espetáculo vai me tocando fundo, me trazendo lembranças. Justamente na semana em que reencontrei uma antiga paixão depois de mais de 20 anos. Em que passei por aquele constrangimento inicial para a alegria das lembranças de um tempo de ingenuidade e de intensidade das emoções, dos amores proibidos. E, em outra cena, em que a personagem faz o público rir pelo exagero de sua reação a uma negação do pai, lembro-me de mim mesma, atirada no chão da sala da minha casa, aos prantos, aos gritos, com sentimentos de ódio e desejos de morte, unicamente pela proibição de meu pai de sair depois de um determinado horário.  E enquanto viajo no tempo, o elenco impecável na sua expressividade, segue em cena, em ações prosaicas mas não por isso menos tocantes. E dão uma aula de teatro, não pelos grandes deslocamentos, gestos ou falas mas pelos olhos, o olhar que diz a nós expectadores muito mais do que qualquer palavra. Eles nos transmitem alegria, sofrimento, sensualidade, angústia e, ao nos encararem, os atores nos levam para dentro da cena, nos aproximando ainda mais do que eles querem dizer. Será?
Saio com a impressão de que é um espetáculo que mais do que tudo leva a gente a ouvir a si próprio e é por isso que a frase “não vai mais ter teatro” não me passa despercebida. Imediatamente, penso que, como jornalista, já ouvi muitas vezes que, no futuro, não haverá mais papel e, no entanto, percebo ali que isso nunca me provocou o que a possibilidade de não existir mais teatro me provoca. E a explicação para isso vem de outra frase dita pelos atores: “Quando eu penso na minha vocação, eu não sinto medo da vida”.  É isso! Exatamente isso que o teatro me trouxe, uma coragem que eu não tinha, o fim de um medo que parecia que não terminaria nunca. Bem, e essa beleza de trilhas sonoras como a desse espetáculo de responsabilidade do próprio diretor com a colaboração (e o amor, diz no programa, de Uriel Battisti). E quando vejo, lá se vão para casa, juntas, em harmonia, aquela que há muito se apaixonou pelo teatro e a outra que se acha na obrigação de convencer todo mundo que a arte e a vida são uma coisa só.

Thursday, June 28, 2012

A opinião sobre teatro na internet



No jornal, o Bonequinho que vai ao cinema aplaude sentado ou em pé. O Bonequinho também pode pular ou dormir dependendo do filme. E tem também a polêmica figura do Bonequinho indo embora da sala de exibição. O leitor vê e sabe, assim, se o filme foi considerado bom ou ruim. Se, na opinião do jornal, vale a pena assisti-lo ou não. Mas, quando quer explicações sobre o motivo do aplauso, da cochilada, dos pulos ou do abandono da obra, ou mesmo das quatro, cinco, três ou nenhuma estrelinha, a análise crítica se faz necessária. A crítica torna-se um grande passo além da mera nota.
            Analisar uma obra, descrevê-la a partir do seu ponto de vista, identificar marcas, fazer ver problemas, méritos, dificuldades vencidas e tentativas fracassadas só não são desafios maiores do que reunir todas essas informações em um só texto e publicá-lo. Se, no primeiro momento, a opinião fica entre amigos, mesas de bar, conversas ao telefone e trocas de inboxes no Facebook, no segundo, sabe Dionísio 
            Não houve e não há uma faculdade de crítica de teatro, tampouco de música, de cinema, de literatura ou de artes visuais. Se quem escreve é alguém ligado unicamente à teoria, ele corre o risco de ser acusado de desconhecer a maquinaria teatral profundamente. Se for alguém da área, o problema fica ainda maior, pois “Como é possível falar mal da peça X se nela está o meu amigo ator, o meu futuro diretor, o meu ex-figurinista?” ou “Se a esposa dele está na peça Y, como ele vai falar mal do diretor?”. A autoridade para escrever a crítica ganha, a cada dia, mais força na própria crítica nesse tempo em que todos escrevem e publicam suas opiniões ou podem simplesmente desenhar bonequinhos, oferecer “curtires” ou usar de qualquer outra forma para divulgar sua avaliação sobre determinada obra de arte.
            Houve um tempo em que um determinado grupo de pessoas ditava o cânone a ser visto: os livros a serem lidos, um jeito certo de pintar, os programas de televisão censurados, os textos teatrais que poderiam ser produzidos. A igreja, o governo civil, a ditadura militar: o povo preguiçoso tinha guias “qualificados” para andar na selva sem pecar. Nos jornais, os editores escolhiam os críticos de teatro entre os jornalistas que se interessavam pelo tema e, ainda hoje, quem escreve sobre arte no Caderno de Cultura, também corre o risco de escrever sobre futebol durante a Copa, sobre política nas Eleições, sobre a Rihanna no Rock In Rio. No maior país da América Latina, há apenas duas pessoas que escrevem críticas de teatro em jornal e não escrevem mais nada além disso. Uma está no Rio de Janeiro e a outra está em São Paulo. Na exata linha oposta, Porto Alegre, Brasília, Fortaleza, Curitiba e Belo Horizonte têm importantes festivais com produções locais de altíssima qualidade. De Manaus a Florianópolis, hoje há mais salas de espetáculos e mais grupos de teatro e de dança do que nos últimos trinta anos. Cursos livres, cursos de formação técnica, graduação, mestrado e doutorado são abertos e se espalham e a Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, a ABRACE, realiza encontros nacionais que reúne pesquisadores e artistas das cinco regiões do Brasil. Ou seja, na mesma medida em que o teatro perde espaço na mídia impressa, ganha-o nas ruas, na academia, nos shoppings, nos prédios restaurados pelo governo e pela iniciativa privada e, sobretudo, na internet.
            Depois de 40 anos escrevendo sobre teatro no jornal, o crítico Macksen Luiz saiu do Jornal do Commercio, seu último local de trabalho, e abriu um blog, dando assim continuidade ao seu trabalho. Com Lionel Fischer (Tribuna da Imprensa), Edgar Olímpio de Souza (Diário Popular) e com Ida Vicenzia (Jornal do Commercio), aconteceu o mesmo. Por outro lado, Luciano Mazza, Marcelo Aouila e Dinah Cesare nunca escreveram em jornais, mas abriram sites ligados ao tema mesmo assim. Em todos esses, há a necessidade de ir além do Bonequinho e compartilhar suas reflexões de forma mais profunda. Para eles, se o Gosto/Não Gosto válido é apenas o primeiro degrau, o último é o debate acerca da peça em cartaz. Nesses espaços, cada um é o seu próprio patrão, o seu próprio editor e, nesse sentido, a sua própria autorização. No Facebook, no Twitter ou por email, os links dos textos são compartilhados. Quando positivas, as críticas ganham printscreens e se tornam cartazes em portas de teatro. Quanto negativas, viram inboxes privados distribuídos em segredo. Emambos os casos, os contadores de acesso marcam o crescente aumento do número de leitores, do número de leituras, do número de textos e o batido “Se gostaram, avisem aos amigos e, se não gostaram, avisem aos inimigos” continua valendo. O crítico que só fala bem pode até ser desacreditado por quem o lê com frequência, mas a produção da peça ruim sente no seu texto um carinhoso alento quando dela todos falam mal, já que o que ele escreveu vai engrossar a pasta a ser entregue nos órgãos competentes a fim de solicitar mais patrocínio, de ganhar editais de ocupação, de receber apoio para viajar. O crítico que só fala mal não existe, embora existam aqueles que, já de antemão, não gostam de determinado diretor, gênero, ator ou de tipo de teatro, honestamente parcializando a sua avaliação. Longe de terminar a tipologia, existem ainda aqueles que não falam nem bem, nem mal das peças a que assistem, procurando mais descrever as obras do que valorá-las, propondo reflexões que ganham corpo, principalmente, na investigação da linguagem artística e da sua recepção. Com isso, se chama a atenção para o fato de que há, felizmente, críticos para todos os gostos e críticas capazes de acompanhar a crescente malha cênica brasileira.
            Desde 2008, a jornalista Helena Mello pesquisa a crítica teatral em espaços virtuais na internet, apresentando, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, a dissertação Aspectos da Crítica Teatral Brasileira na EraDigital. Após entrevistar cerca de 80 pessoas ligadas ao teatro, incluindo críticos teatrais, o trabalho é referência por apontar questões relevantes com embasamento teórico, tais como, entre outras: a autoridade do crítico teatral da internet e a linguagem utilizada nesse tipo de texto. Sobre o primeiro ponto, entram na pauta dois temas – a necessidade humana de compartilhar experiências e a manutenção da verdade como uma estrutura sólida. A internet possibilita ao homem comunicar-se com desconhecidos do mundo todo em uma relação que cruza fronteiras geográficas e temporais. Afinal, uma foto sua publicada no Fotolog em 2005 pode ser acessada ainda hoje por alguém que nasceu em 2006 e isso está livre de acontecer na sua cidade ou do outro lado do mundo igualmente. Nesse sentido, pairam na rede, pontos de vista bastante diferentes e também bastante iguais sobre acontecimentos de qualquer tipo. As verdades, cada vez menos sólidas e mais fluídas, são questões que estimulam a maneira de pensar a arte, modificando, com certeza, a velha crítica, mas apresentando uma nova à qual, segundo a pesquisadora, é “pura perda de tempo resistir”.
            Orientada por Edélcio Mostaço, Helena Mello cita o caso recente da publicação de críticas teatrais anônimas em Santa Catarina, que causaram um alvoroço feroz entre a classe artística de lá naquela ocasião. “É natural que uma pessoa que escreve de modo desrespeitoso, aparentemente sem critério, questionando aspectos pessoais daqueles que fazem arte não seja bem aceita no meio artístico. Acho que fizeram bem aqueles que procuraram buscar sua identidade, reclamaram do espaço que ela ocupou, etc. Mas, também achei extremamente pertinente a colocação do ator  Daniel Olivetto ao perguntar se é preciso realmente saber QUEM fala. Afinal, diz ele, os textos bíblicos provocam profundas discussões sem que a autoria seja posta a prova. Além disso, é bem verdade que os artistas costumam dizer que o que importa é o diálogo aberto com o público, a troca. Então, por que preciso saber quem fala para dar importância ao que está sendo dito?” É natural, sem dúvida, que seja dado mais valor às opiniões de pessoas que conciliam a formação acadêmica com o envolvimento artístico, mas desconsiderar os demais pontos de vista é, sem dúvida também, fechar-se para o desconhecido. Participando de encontros nacionais e internacionais de artes cênicas, (em maio, por exemplo, houve a IV Jornadas Nacionales de Investigación y CríticaTeatral, na Argentina) Helena Mello afirma que “o público, os leitores, o mercado se encarrega de dar ou tirar espaço daqueles que se intitulam críticos. E, considerando que, hoje, na virtualidade, não há mais a chancela de um jornal, isso acontece ainda mais facilmente. O resto são perguntas e não respostas, embora eu não veja nisso um problema. É a partir das primeiras que aguçamos a nossa sensibilidade e fortalecemos a nossa capacidade de refletir.”
            Sobre a questão da linguagem, a internet possibilita mais liberdade a quem nela escreve, não só em relação ao tamanho do texto. Fotos e vídeos podem ser anexados facilmente ao texto, assim como o recurso do hiperlink pode ser um importante aliado tanto do autor como do leitor. Enquanto lê o texto, é possível conhecer o site do grupo, ver cenas da peça, ouvir sua trilha sonora. Ao fazer relação com quadros, livros, filmes, lugares, ou qualquer outra fonte, a análise crítica publicada na internet pode proporcionar o acesso a essas informações de modo rápido e fácil.
            Lionel Fischer diz só ver vantagens ao escrever para o próprio site. “No blog, escrevo o que quero e sem nenhuma preocupação, por exemplo, com o tamanho dos artigos ou das críticas. Como sou o patrão de mim mesmo (pela primeira vez na vida, diga-se de passagem), desfruto de uma deliciosa e imensa liberdade. Tenho, no momento, 385 seguidores, mas sei que há um número muito maior de pessoas que lê o que escrevo, pois, muitas vezes, pessoas que não são seguidoras comentam comigo - pessoalmente ou por e-mail - os artigos e as críticas que posto.” Ida Vincenzia concorda com ele e, sobre a repercussão que a internet proporciona, acrescenta: “Recebo muitos e-mails comentando as críticas, além de convites para escrever sobre teatro. São pessoas aconselhando ao público de teatro a assistirem às peças por mim criticadas, ou indicando a leitura das críticas. A repercussão me surpreende. Outras afirmam a importância que tiveram, em suas carreiras, as observações feitas por mim. Isso tudo me faz perceber como os blogs são um veículo efetivo de comunicação, e como são recebidos pela classe teatral.” Marcelo Aouila, que diz não escrever críticas, mas opiniões pessoais, conta que “existe um link entre o blog e o Facebook. As pessoas curtem, criticam minha opinião e comentam sobre os espetáculos. Surpreendentemente, algumas vezes, já me pararam em locais públicos para dizer que lêem o que eu escrevo. Como também sou produtor cultural, sei das dificuldades de se produzir um espetáculo e do sofrimento que é quando alguém fala mal do seu trabalho sem saber as condições de produção. Procuro apontar coisas que possam melhorar, e evito falar mal. Mas nem sempre dá para não falar mal. Quando não gosto de nada da peça, eu não escrevo. Sempre tem algo de bom para comentar. Às vezes, eu nem gosto, mas tenho a consciência de que funciona para um tipo de plateia. Então, se funciona, tem q ser valorizado. É melhor ser sincero para quem lê do que agradar a quem está trabalhando e ser incoerente com o que penso.” Para, Edgar Olímpio de Souza, da revista virtual Stravaganza, “abrir um site de cultura, com espaço também para outras áreas culturais, é uma maneira de não ficar sujeito aos critérios nem sempre artísticos que orientam a cobertura teatral feita pelas revistas e pelos jornais tradicionais. Ou seja, tenho plena autonomia para abordar uma peça no meu blog, não importando se o espetáculo seja estrelado ou não por um(a) “artista da Globo”, alguma figura midiática ou esteja amparado por ampla publicidade.”
            Uma iniciativa bastante interessante é a Revista Questão de Crítica, um site dedicado a publicação de críticas e de estudos sobre o teatro. Dinah Cesare, uma das coordenadoras do projeto juntamente com Daniele Avila, conta que a ideia surgiu no final de seu curso de graduação em Artes Cênicas com habilitação em Teoria do Teatro na UNIRIO. “Nós finalizávamos o curso de teoria e a Daniele lançou um projeto para novos críticos na antiga edição do riocenacomportanea, que foi como um laboratório para nossa revista. Assistíamos aos espetáculos do festival e escrevíamos as críticas em tempo de publicação. A experiência nos possibilitou vislumbrar a criação de um espaço para a prática reflexiva sobre o teatro. Nós havíamos estudado a criação de perspectivas e de categorias novas para pensar a cena teatral e queríamos exercitar o olhar e a escrita em atrito com as produções artísticas. Sempre acreditamos que existe um público que está interessado na crítica, assim como na arte, ou seja, interessado em novos modos de ver e de construir o mundo.” Sobre aos acessos ao site, ela garante que “a repercussão da revista é pensada como um todo. Temos um índice significativo de visitas, considerando que se trata de conteúdo sobre teatro. Recebemos sistematicamente emails das assessorias dos espetáculos em cartaz no convidando para ver os trabalhos das pessoas. Em alguma medida, recebemos também retorno de artistas interessados em dialogar. Também recebemos comentários pela web. Isso tudo está crescendo. Cada vez mais pessoas que se dedicam ao teatro, tanto para pensá-lo quanto para fazê-lo mais propriamente. Estamos planejando o Segundo Encontro Questão de Crítica. Realizamos uma premiação em 2012 e já estamos no processo para2013.”
            Talvez, para o futuro, o melhor benefício da crítica teatral nos espaços virtuais seja a potencialidade que ela tem de ser um arquivo aberto e constantemente alimentado de textos e de imagens dos espetáculos teatrais. Para conhecer as produções teatrais do Rio de Janeiro nos anos 80 e 90, para não irmos muito longe, o pesquisador deverá recorrer aos jornais e revistas. Haverá algumas críticas, algumas matérias e o serviço, contendo o título e alguns nomes da ficha técnica. Felizmente, depois do boom da internet, as ferramentas de busca oferecem um arsenal muito maior. Testemunhas de uma encenação, os críticos partilham o seu olhar por sobre as obras, colocando suas análises em lugar próximo às peças. Graças ao aumento do número de textos, é comum encontrar mais de dois pontos de vista por sobre o mesmo espetáculo, estando no leitor a tarefa de separar “o joio do trigo” e confiar nesta ou naquela opinião. Finalizando com uma frase de Antonio Costella, trazida pela pesquisadora Helena Mello, fica o valor da crítica disposta na internet: "Mas a roda faz andar a ambulância e o canhão, o avião serve para avizinhar cidades e para atirar bombas sobre elas, a energia nuclear contém o poder quase mágico de alavancar a humanidade e, ao mesmo tempo, o de destruí-la. Os meios de comunicação serão aquilo que o ser humano fizer deles". Abordado na saída, o Bonequinho pode agora se explicar (se quiser).
onde as palavras vão parar, porque uma vez impresso, virtualmente ou não, a possibilidade de leitores do tal texto aí não tem fim.
            Não houve e não há uma faculdade de crítica de teatro, tampouco de música, de cinema, de literatura ou de artes visuais. Se quem escreve é alguém ligado unicamente à teoria, ele corre o risco de ser acusado de desconhecer a maquinaria teatral profundamente. Se for alguém da área, o problema fica ainda maior, pois “Como é possível falar mal da peça X se nela está o meu amigo ator, o meu futuro diretor, o meu ex-figurinista?” ou “Se a esposa dele está na peça Y, como ele vai falar mal do diretor?”. A autoridade para escrever a crítica ganha, a cada dia, mais força na própria crítica nesse tempo em que todos escrevem e publicam suas opiniões ou podem simplesmente desenhar bonequinhos, oferecer “curtires” ou usar de qualquer outra forma para divulgar sua avaliação sobre determinada obra de arte.
            Houve um tempo em que um determinado grupo de pessoas ditava o cânone a ser visto: os livros a serem lidos, um jeito certo de pintar, os programas de televisão censurados, os textos teatrais que poderiam ser produzidos. A igreja, o governo civil, a ditadura militar: o povo preguiçoso tinha guias “qualificados” para andar na selva sem pecar. Nos jornais, os editores escolhiam os críticos de teatro entre os jornalistas que se interessavam pelo tema e, ainda hoje, quem escreve sobre arte no Caderno de Cultura, também corre o risco de escrever sobre futebol durante a Copa, sobre política nas Eleições, sobre a Rihanna no Rock In Rio. No maior país da América Latina, há apenas duas pessoas que escrevem críticas de teatro em jornal e não escrevem mais nada além disso. Uma está no Rio de Janeiro e a outra está em São Paulo. Na exata linha oposta, Porto Alegre, Brasília, Fortaleza, Curitiba e Belo Horizonte têm importantes festivais com produções locais de altíssima qualidade. De Manaus a Florianópolis, hoje há mais salas de espetáculos e mais grupos de teatro e de dança do que nos últimos trinta anos. Cursos livres, cursos de formação técnica, graduação, mestrado e doutorado são abertos e se espalham e a Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, a ABRACE, realiza encontros nacionais que reúne pesquisadores e artistas das cinco regiões do Brasil. Ou seja, na mesma medida em que o teatro perde espaço na mídia impressa, ganha-o nas ruas, na academia, nos shoppings, nos prédios restaurados pelo governo e pela iniciativa privada e, sobretudo, na internet.
            Depois de 40 anos escrevendo sobre teatro no jornal, o crítico Macksen Luiz saiu do Jornal do Commercio, seu último local de trabalho, e abriu um blog, dando assim continuidade ao seu trabalho. Com Lionel Fischer (Tribuna da Imprensa), Edgar Olímpio de Souza (Diário Popular) e com Ida Vicenzia (Jornal do Commercio), aconteceu o mesmo. Por outro lado, Luciano MazzaMarcelo Aouila Dinah Cesare nunca escreveram em jornais, mas abriram sites ligados ao tema mesmo assim. Em todos esses, há a necessidade de ir além do Bonequinho e compartilhar suas reflexões de forma mais profunda. Para eles, se o Gosto/Não Gosto válido é apenas o primeiro degrau, o último é o debate acerca da peça em cartaz. Nesses espaços, cada um é o seu próprio patrão, o seu próprio editor e, nesse sentido, a sua própria autorização. No Facebook, no Twitter ou por email, os links dos textos são compartilhados. Quando positivas, as críticas ganham printscreens e se tornam cartazes em portas de teatro. Quanto negativas, viram inboxes privados distribuídos em segredo. Emambos os casos, os contadores de acesso marcam o crescente aumento do número de leitores, do número de leituras, do número de textos e o batido “Se gostaram, avisem aos amigos e, se não gostaram, avisem aos inimigos” continua valendo. O crítico que só fala bem pode até ser desacreditado por quem o lê com frequência, mas a produção da peça ruim sente no seu texto um carinhoso alento quando dela todos falam mal, já que o que ele escreveu vai engrossar a pasta a ser entregue nos órgãos competentes a fim de solicitar mais patrocínio, de ganhar editais de ocupação, de receber apoio para viajar. O crítico que só fala mal não existe, embora existam aqueles que, já de antemão, não gostam de determinado diretor, gênero, ator ou de tipo de teatro, honestamente parcializando a sua avaliação. Longe de terminar a tipologia, existem ainda aqueles que não falam nem bem, nem mal das peças a que assistem, procurando mais descrever as obras do que valorá-las, propondo reflexões que ganham corpo, principalmente, na investigação da linguagem artística e da sua recepção. Com isso, se chama a atenção para o fato de que há, felizmente, críticos para todos os gostos e críticas capazes de acompanhar a crescente malha cênica brasileira.
            Desde 2008, a jornalista Helena Mello pesquisa a crítica teatral em espaços virtuais na internet, apresentando, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, a dissertação Aspectos da Crítica Teatral Brasileira na EraDigital. Após entrevistar cerca de 80 pessoas ligadas ao teatro, incluindo críticos teatrais, o trabalho é referência por apontar questões relevantes com embasamento teórico, tais como, entre outras: a autoridade do crítico teatral da internet e a linguagem utilizada nesse tipo de texto. Sobre o primeiro ponto, entram na pauta dois temas – a necessidade humana de compartilhar experiências e a manutenção da verdade como uma estrutura sólida. A internet possibilita ao homem comunicar-se com desconhecidos do mundo todo em uma relação que cruza fronteiras geográficas e temporais. Afinal, uma foto sua publicada no Fotolog em 2005 pode ser acessada ainda hoje por alguém que nasceu em 2006 e isso está livre de acontecer na sua cidade ou do outro lado do mundo igualmente. Nesse sentido, pairam na rede, pontos de vista bastante diferentes e também bastante iguais sobre acontecimentos de qualquer tipo. As verdades, cada vez menos sólidas e mais fluídas, são questões que estimulam a maneira de pensar a arte, modificando, com certeza, a velha crítica, mas apresentando uma nova à qual, segundo a pesquisadora, é “pura perda de tempo resistir”.
            Orientada por Edélcio Mostaço, Helena Mello cita o caso recente da publicação de críticas teatrais anônimas em Santa Catarina, que causaram um alvoroço feroz entre a classe artística de lá naquela ocasião. “É natural que uma pessoa que escreve de modo desrespeitoso, aparentemente sem critério, questionando aspectos pessoais daqueles que fazem arte não seja bem aceita no meio artístico. Acho que fizeram bem aqueles que procuraram buscar sua identidade, reclamaram do espaço que ela ocupou, etc. Mas, também achei extremamente pertinente a colocação do ator  Daniel Olivetto ao perguntar se é preciso realmente saber QUEM fala. Afinal, diz ele, os textos bíblicos provocam profundas discussões sem que a autoria seja posta a prova. Além disso, é bem verdade que os artistas costumam dizer que o que importa é o diálogo aberto com o público, a troca. Então, por que preciso saber quem fala para dar importância ao que está sendo dito?” É natural, sem dúvida, que seja dado mais valor às opiniões de pessoas que conciliam a formação acadêmica com o envolvimento artístico, mas desconsiderar os demais pontos de vista é, sem dúvida também, fechar-se para o desconhecido. Participando de encontros nacionais e internacionais de artes cênicas, (em maio, por exemplo, houve a IV Jornadas Nacionales de Investigación y CríticaTeatral, na Argentina) Helena Mello afirma que “o público, os leitores, o mercado se encarrega de dar ou tirar espaço daqueles que se intitulam críticos. E, considerando que, hoje, na virtualidade, não há mais a chancela de um jornal, isso acontece ainda mais facilmente. O resto são perguntas e não respostas, embora eu não veja nisso um problema. É a partir das primeiras que aguçamos a nossa sensibilidade e fortalecemos a nossa capacidade de refletir.”
            Sobre a questão da linguagem, a internet possibilita mais liberdade a quem nela escreve, não só em relação ao tamanho do texto. Fotos e vídeos podem ser anexados facilmente ao texto, assim como o recurso do hiperlink pode ser um importante aliado tanto do autor como do leitor. Enquanto lê o texto, é possível conhecer o site do grupo, ver cenas da peça, ouvir sua trilha sonora. Ao fazer relação com quadros, livros, filmes, lugares, ou qualquer outra fonte, a análise crítica publicada na internet pode proporcionar o acesso a essas informações de modo rápido e fácil.
            Lionel Fischer diz só ver vantagens ao escrever para o próprio site. “No blog, escrevo o que quero e sem nenhuma preocupação, por exemplo, com o tamanho dos artigos ou das críticas. Como sou o patrão de mim mesmo (pela primeira vez na vida, diga-se de passagem), desfruto de uma deliciosa e imensa liberdade. Tenho, no momento, 385 seguidores, mas sei que há um número muito maior de pessoas que lê o que escrevo, pois, muitas vezes, pessoas que não são seguidoras comentam comigo - pessoalmente ou por e-mail - os artigos e as críticas que posto.” Ida Vincenzia concorda com ele e, sobre a repercussão que a internet proporciona, acrescenta: “Recebo muitos e-mails comentando as críticas, além de convites para escrever sobre teatro. São pessoas aconselhando ao público de teatro a assistirem às peças por mim criticadas, ou indicando a leitura das críticas. A repercussão me surpreende. Outras afirmam a importância que tiveram, em suas carreiras, as observações feitas por mim. Isso tudo me faz perceber como os blogs são um veículo efetivo de comunicação, e como são recebidos pela classe teatral.” Marcelo Aouila, que diz não escrever críticas, mas opiniões pessoais, conta que “existe um link entre o blog e o Facebook. As pessoas curtem, criticam minha opinião e comentam sobre os espetáculos. Surpreendentemente, algumas vezes, já me pararam em locais públicos para dizer que lêem o que eu escrevo. Como também sou produtor cultural, sei das dificuldades de se produzir um espetáculo e do sofrimento que é quando alguém fala mal do seu trabalho sem saber as condições de produção. Procuro apontar coisas que possam melhorar, e evito falar mal. Mas nem sempre dá para não falar mal. Quando não gosto de nada da peça, eu não escrevo. Sempre tem algo de bom para comentar. Às vezes, eu nem gosto, mas tenho a consciência de que funciona para um tipo de plateia. Então, se funciona, tem q ser valorizado. É melhor ser sincero para quem lê do que agradar a quem está trabalhando e ser incoerente com o que penso.” Para, Edgar Olímpio de Souza, da revista virtual Stravaganza, “abrir um site de cultura, com espaço também para outras áreas culturais, é uma maneira de não ficar sujeito aos critérios nem sempre artísticos que orientam a cobertura teatral feita pelas revistas e pelos jornais tradicionais. Ou seja, tenho plena autonomia para abordar uma peça no meu blog, não importando se o espetáculo seja estrelado ou não por um(a) “artista da Globo”, alguma figura midiática ou esteja amparado por ampla publicidade.”
            Uma iniciativa bastante interessante é a Revista Questão de Crítica, um site dedicado a publicação de críticas e de estudos sobre o teatro. Dinah Cesare, uma das coordenadoras do projeto juntamente com Daniele Avila, conta que a ideia surgiu no final de seu curso de graduação em Artes Cênicas com habilitação em Teoria do Teatro na UNIRIO. “Nós finalizávamos o curso de teoria e a Daniele lançou um projeto para novos críticos na antiga edição do riocenacomportanea, que foi como um laboratório para nossa revista. Assistíamos aos espetáculos do festival e escrevíamos as críticas em tempo de publicação. A experiência nos possibilitou vislumbrar a criação de um espaço para a prática reflexiva sobre o teatro. Nós havíamos estudado a criação de perspectivas e de categorias novas para pensar a cena teatral e queríamos exercitar o olhar e a escrita em atrito com as produções artísticas. Sempre acreditamos que existe um público que está interessado na crítica, assim como na arte, ou seja, interessado em novos modos de ver e de construir o mundo.” Sobre aos acessos ao site, ela garante que “a repercussão da revista é pensada como um todo. Temos um índice significativo de visitas, considerando que se trata de conteúdo sobre teatro. Recebemos sistematicamente emails das assessorias dos espetáculos em cartaz no convidando para ver os trabalhos das pessoas. Em alguma medida, recebemos também retorno de artistas interessados em dialogar. Também recebemos comentários pela web. Isso tudo está crescendo. Cada vez mais pessoas que se dedicam ao teatro, tanto para pensá-lo quanto para fazê-lo mais propriamente. Estamos planejando o Segundo Encontro Questão de Crítica. Realizamos uma premiação em 2012 e já estamos no processo para2013.”
            Talvez, para o futuro, o melhor benefício da crítica teatral nos espaços virtuais seja a potencialidade que ela tem de ser um arquivo aberto e constantemente alimentado de textos e de imagens dos espetáculos teatrais. Para conhecer as produções teatrais do Rio de Janeiro nos anos 80 e 90, para não irmos muito longe, o pesquisador deverá recorrer aos jornais e revistas. Haverá algumas críticas, algumas matérias e o serviço, contendo o título e alguns nomes da ficha técnica. Felizmente, depois do boom da internet, as ferramentas de busca oferecem um arsenal muito maior. Testemunhas de uma encenação, os críticos partilham o seu olhar por sobre as obras, colocando suas análises em lugar próximo às peças. Graças ao aumento do número de textos, é comum encontrar mais de dois pontos de vista por sobre o mesmo espetáculo, estando no leitor a tarefa de separar “o joio do trigo” e confiar nesta ou naquela opinião. Finalizando com uma frase de Antonio Costella, trazida pela pesquisadora Helena Mello, fica o valor da crítica disposta na internet: "Mas a roda faz andar a ambulância e o canhão, o avião serve para avizinhar cidades e para atirar bombas sobre elas, a energia nuclear contém o poder quase mágico de alavancar a humanidade e, ao mesmo tempo, o de destruí-la. Os meios de comunicação serão aquilo que o ser humano fizer deles". Abordado na saída, o Bonequinho pode agora se explicar (se quiser).

Rodrigo Monteiro
Revista de Teatro da SBAT, número  530, março e abril de 2012