Saturday, September 29, 2012

Intocáveis: o luxo de uma relação improvável


Muita gente comentando sobre o filme Intocáveis. Deixei o tempo passar sem escrever nada, mas acabei tendo vontade de registrar algumas impressões. Porque não é sempre, não tem sido tão constante como eu gostaria, ter algo que me motive como nesse caso.
Primeiro: não gosto da cena inicial. Por quê? Bem, porque  é uma enganação de uma situação crítica, de emergência. Um trote. E essas coisas nunca foram do meu agrado. Porém, é uma cena incrível, muito significativa. Nela já reside a cumplicidade dos dois personagens principais, na maneira como eles encaram a situação terrível em que se encontra um tetraplégico. E é ela que já começa a nos dizer que não se trata de uma história para sentirmos pena. Nisso reside a maestria desse filme.
A fotografia do filme é linda. Não é escura. Não trabalha com tons de desgraça, tristeza, pesares. O fato de um dos personagens ser rico e quase todas as cenas se passarem nesse ambiente de luxo fica impressionando nossos olhos e, pelo menos para mim, saber que eles estão em Paris também reforça essa sensação. Porém, não é isso o verdadeiro valor dos Intocáveis. Ao contrário. É o olhar que eles fazem para dentro de si mesmos, e entre eles, que nos toca. Além disso, o filme mantém, na maior parte, um tom cômico. As coisas mais graves e dramáticas aparecem de forma levemente engraçada. E sem que percebamos estamos rindo daquele corpo inerte, daquela incapacitação. Por sadismo? Não. Mas porque o filme consegue nos passar que não é somente naquilo que se restringe o protagonista. Talvez fosse antes de ele estabelecer a relação com seu cuidador que é o verdadeiro foco. E por que ela se estabelece? Pela necessidade. De ambos. Coloca a desigualdade social em paralelo com a incapacidade física. De certa forma, ambos carecem de mobilidade. E a medica que a relação deles vai se aprofundando, as cenas vão sendo apresentadas como sopros de vida, nas duas vidas. E nós podemos sentir o afeto crescendo e trazendo expectativas para os dois.
Não há nada de patético. Eles se divertem e dançam, trocam confidências. Entre carros de luxos, ambientes incríveis e críticas ao mercado da arte, os dois atores nos encantam com suas performances que são devidamente reforçadas por todos os demais personagens do filme que seguem a mesma forma de atuar em que olhares e sorrisos dizem mais do que todas as palavras. Aliás, tirando raros momentos de conversas mais longas, o filme explora de modo perfeito pequenos gestos e expressões.
Nenhum aspecto é esquecido. Sexo, morte, drogas tudo é trazido à-tona sem discursos moralistas nem lados fúnebres. São temas que vão aparecendo aos poucos, na medida em que a relação se intensifica. Assim, enquanto tanto se fala em acessibilidade e inclusão social, os Intocáveis dá uma aula, mostrando que não são apenas rampas e portas que farão com que qualquer pessoa que tenha algum problema físico ou interior se sinta pertencente a algo. É preciso troca. É preciso atenção. É preciso ver no outro tudo que ele é além da sua incapacitação. O filme faz isso parecer fácil e saímos dele mexidos com tanta sutileza, com tanto sentimento. Saber que se trata uma história verídica só valoriza a força dessa obra que soube captar de maneira genial esse relacionamento improvável.  Creio que é por tudo isso que ninguém sai do cinema intocado. 

Thursday, September 20, 2012

“Hay que endurecer-se pero sin perder la ternura jamás”*



É lúdico, é crítico, é poético, é técnico, é genial. Antes de sair, tentei ver quanto tempo tinha para pensar na logística da volta. Não encontrei Fuerza Bruta entre os espetáculos. E não é à toa. Ele está na lista de shows e foi programado para ser apresentado no Pepsi on stage, onde eu nunca tinha ido antes. Não podia ter feito uma estreia mais perfeita. Voltarei a esse local, mas, dificilmente, verei algo melhor. Se bem que quando se trata do Porto Alegre em cena, e do que Luciano Alabarse é capaz de trazer a cidade, é melhor não dizer isso.

Fui sozinha e não lembro quando foi a última vez que fui aos espetáculos sem ver na plateia as caras de teatro. Mas é isso que o festival faz além de incluir diversas faixas etárias e muitas “tribos”. Do salto alto a cabelos roxos e tatuagens. Sem lugares marcados, em um espaço enorme, as pessoas iam chegando sem saber muito onde ficar e havia uma inquietação, um burburinho e uma tentativa de disputar o melhor lugar mesmo sem saber onde seria. Entretanto, assim que somos induzidos a entrar isso já não faz o menor sentido. Durante todo o tempo o foco é mudado de lugar. Somos levados de um lado para outro, obrigados a fazer um movimento conjunto e não individual e, muito menos, individualista. E a tensão que paira no ar nos faz cúmplices e não tenho dúvidas de que provoca em cada um impressões diferentes. Para mim, a fumaça que começava a preencher o ambiente, enquanto todos olhavam para o alto sem espaço para se mover, lembrou uma cena do filme A lista de Shindler quando os judeus entravam para as câmeras de gás ainda sem saber o que aconteceria mas tensos. Dramático, eu sei. Tem pessoas que acham que comentar ou criticar um espetáculo não tem a ver com dizer o que se sente e o que se pensa sob um ponto de vista pessoal. Eu, porém, em geral, não leio o que os outros escrevem, pois tudo que encontro é uma descrição das cenas, o resumo das histórias, meio que se encaminhando para aquele chiste de quem avisa que o protagonista morre no final. Eu, por outro lado, não sei escrever sobre nada se tiver que deixar de lado minhas impressões. Só fiz isso quando escrevia sobre notícias e não assinava os textos. Hoje, quem me lê já sabe que vai encontrar a minha opinião associada com as minhas experiências. E é isso que o espetáculo significou para mim. Mas, não se engane que tudo possa ser assim previsível. Se você pensa que já viu de tudo, devo dizer que esse show prova que não.

Felizmente, a expectativa nesse caso era mais branda, embora as cenas que seriam propostas nos colocariam em cheque com algo pesado, a imagem da violência e a inutilidade do esforço constante em direção a algo que não se alcança nunca. Mas essa é apenas uma das propostas. Existem outras mais leves, divertidas e que também nos envolvem. E quando você está simplesmente maravilhado com os integrantes do grupo, desejando ser um deles, fazer o que eles estão fazendo, eles se misturam com o público e vão além do anúncio feito no início de que você faria parte do espetáculo. Agora, são eles que fazem parte do público. E eles se arriscam fisicamente embora pareçam estar brincando. E eles mostram a beleza estética do corpo humano em movimento. Isso tudo de forma vertiginosa e com um rigor, uma precisão impressionantes. Ao sair, concluo que, se um dia eu pensei que as palavras nos salvariam da nossa desumanidade, hoje, acredito que é a arte. Creio que serão necessárias outras Fuerzas Brutas.

*Ernesto Che Guevara

Ficha Técnica

Direção artística: Diqui James / Direção Técnica: Alejandro García / Produção: Diego Weinschelbaum / Produção Executiva: Analia Turuzzi e Liz Hood / Elenco: flutuante / Duração: 60min / Recomendação Etária: 16 anos

Monday, September 03, 2012

FITE: Sete dias de arte circulando pelas ruas, pelas veias, pela vida.


Quando tomei conhecimento do Festival Internacional de Teatro estudantil pensei que não poderia acompanhar, pois estava envolvida com outras atividades. Felizmente, acabei sendo convidada pela Coordenação de Artes cênicas para ser analisadora dos espetáculos. Tive uma pequena participação nesse evento que promoveu workshops, palestras, debates, além de claro, dos espetáculos.
Dos quase 40 espetáculos apresentados vi apenas aqueles que comentei. Sete no total. Não vou falar de todos, pois teria muito que escrever e não é tarefa fácil resumir o que significou ver esses trabalhos. Uma coisa que repeti em todas as apresentações foi o meu prazer em ver teatro com tanta gente no palco. Por uma questão de praticidade, de logística, o teatro de hoje tende a ser de grupos menores e, até mesmo, monólogos.  Assim, ver a solução desses diretores para garantir a participação de todos, seja criando núcleos, dividindo funções, mesclando formas artísticas como a dança, a música, a contação de causos... Em quase tudo que vi havia soluções cênicas inteligentes e criativas que exigiam dos atores uma maturidade que superou em muito as minhas expectativas.
Preciso falar também como foi bom ver em prática essa ideia de fazer pensar a arte através das discussões com o grupo e com a plateia. Depois de ter sido mediadora da Bienal do Mercosul, foi ótimo poder fazer isso com  teatro. Por ser uma proposta nova para mim, não sei se fiz certo ou errado, mas não achei que devesse considerar toda a adversidade que professores e alunos enfrentam para chegar aos resultados. Tentava olhar com certa frieza, como um espectador que paga o ingresso e vai assistir a um espetáculo. Sei que isso deve ter parecido muito injusto em algumas ocasiões, mas acabei me tranquilizando ao perceber que, toda vez que fazia um comentário mais crítico, a própria plateia tomava a frente e partia em defesa dos grupos que saiam do palco com muitos elogios e muito reforço para continuar fazendo o que estavam fazendo.
O FITE mostrou o resultado de uma equipe competente que não mede esforços para abrir espaço para as artes cênicas e que sabe enfrentar diversidades e lidar com os imprevistos deste evento que me ensinou novas palavras pelo espetáculo de Isaias Quadros com Eros e Thanatos in Pessoa, me fez saber mais sobre o Rio São Francisco pelo grupo de mineiros, me emocionou com a dura realidade retratada pelo grupo da CESMAR, me mostrou a liberdade da arte na releitura de Giselle em cordel, me divertiu com as histórias do Reino das Névoas e O mágico de Oz. Porém, o melhor de tudo é que não fez isso só comigo. Atraiu um público de estudantes que, em sua maioria, se comportou melhor do que plateias adultas, muito mais acostumadas com teatro. Não havia celulares tocando, fotos sendo tiradas, conversas paralelas. Ao contrário. Silenciosos, respeitosos.
Durante sete dias, houve uma movimentação intensa nas salas teatrais da cidade. Workshops, oficinas, gente trocando experiências, compartilhando conhecimento ou simplesmente fazendo como o menino ruivo que se aproximou de mim e disse: “Muito prazer. Meu nome é Leonardo. Que lindo esse teu anel.” Gentilezas que surgiam do prazer de estar próximo de pessoas que gostam das mesmas coisas, que entendem a importância do “fazer de conta”. Agora, nada foi mais emocionante e me trouxe mais esperanças no futuro do que ver a Dona Hilma no palco totalmente concentrada em suas cenas. Uma senhora de avançada idade, mesclada a um elenco heterogêneo que deixou ainda mais claro porque o teatro me apaixona. Para fazer teatro não é preciso ser alto, baixo, magro, gordo, louro, moreno, branco ou preto, jovem, velho.
Fui para analisar, que em grego significa “dissolver”, para facilitar a compreensão, uma prática utilizada antes mesmo de Aristóteles como um método para a descoberta de fenômenos físicos. Sai dissolvida em poesia, em emoção, em energia, entendendo ainda mais que o teatro é a arte da inclusão natural, onde todos podem tudo e descobrimos o quanto a vida vale a pena se explorarmos ela com coragem até o fim.