Sair da minha casa no Cristal,
devido às obras do novo viaduto e do meu time, tornou-se um desafio. Não
importa o dia e nem o horário. E eu ainda não acertei o cálculo do tempo para
chegar a qualquer lugar desde então. Não foi diferente no Domingo quando saí
para ver Bodas de Papelão. Todo mundo sabe que eu gosto de teatro, mas, às
vezes, vai além da vontade de assistir a alguma coisa. É também um compromisso
assumido com os amigos.
O Gasômetro é um lugar querido
para mim desde a primeira Bienal quando fui mediadora e passei três meses andando
todos os dias por aqueles corredores. Podia ter implicância, mas foi o
contrário. Tenho afeto até mesmo por aquelas salinhas transformadas em teatro
por algumas horas. Ainda mais quando, depois de dizer o meu nome, sinto um tom
de reconhecimento de uma menina que não identifico. Preciso de alguns minutos para
ver que era o “Mágico de Oz” do último espetáculo que assisti do grupo Leva Eu.
E sorrio pensando que coisa boa que eles conseguiram assumir seus personagens e
serem diferentes de si mesmos. Também acho graça ao me dar conta de que, desde
o primeiro momento, simpatizei com o nome do grupo. Logo eu que costumo corrigir
todos os erros de português que identifico. E é com essa vontade de gostar que
entro no espaço que já não é uma sala escura, mas tem elementos suficientes
para que a gente identifique as ruas de uma cidade qualquer.
Logo no começo, porém, os atores,
no texto do jornalista Renato Mendonça, especificam que se trata das ruas de
Porto Alegre. E o espetáculo traz elementos dessa mistura entre jornalismo e
teatro que, depois de quase dez anos no Departamento de Artes Dramáticas, já
não me surpreende. Isso não quer dizer
que o espetáculo é previsível. Não é. Trata de um assunto cotidiano. Mostra as
pessoas que “vemos” todos os dias: os moradores de rua, mas com uma delicadeza
e, ao mesmo tempo, com uma intensidade que não tem como não me sensibilizar e,
nesse momento, eu desejo que isso aconteça com toda a plateia. O que acho que
faz parte da linguagem que, nós jornalistas, aprendemos a explorar são as
imagens projetadas de locais reais da cidade. Soma-se a isso uma escolha de
músicas que sublinham a falta de identidade daqueles dois que, além de cantar,
chegam a dançar um tango. É essa mistura entre a arte e a vida que os
comunicadores da área da cultura tentam elaborar e que nesse espetáculo acabou
resultando nessa dramaturgia tão relevante para os nossos dias.
Mas quem é essa atriz que brilha
naquele “palco” desde o primeiro instante? Ela é tão radiante que, em alguns
momentos, apesar de sua ótima interpretação, fica difícil ver alguém debilitado
pela falta de atenção, de cuidados, de tudo que é básico para a sobrevivência
de um ser humano. Ela se chama Marjorie Moreira. E Igor Ramos contracena com
ela fazendo um personagem com uma das características mais complicadas: a de
bêbado. Todo mundo que conheço já fez a imitação de alguém bêbado um dia, não
convincente. Exageram demais, não enrolam a língua direito. Igor é perfeito. Se
eu não conhecesse o seu profundo compromisso com o teatro diria que aquelas
garrafas continham mesmo cachaça. Mas, ele não se restringe a isso. Ele é o protetor
da sua esposa, o que não deixa que ela perca as esperanças, se desanime mesmo
diante das agruras da vida da rua, da falta de humanidade dos outros que passam
por eles como se fossem invisíveis. Os outros? Eu, tu, nós. E uma fala me chama
muito a atenção: eles enfatizam que são moradores de Porto Alegre. É nesse
momento, como em tantos outros desse espetáculo, que se quebra a distância que
existe de quem tem um teto ou de quem fica ao relento. E o texto é repleto de
sutilezas e também de palavrões, de xingamentos e de filosofia: “só viver não
basta”, diz um deles. E eles sonham com a neve. Exatamente como eu, que também
nunca vi nevar. Mas, não era preciso essa “coincidência” para que eu já me
sentisse mexida com o espetáculo e, sem nem tentar fugir do clichê, não sou a
mesma quando saio daquela sala menos de uma hora depois. Essa é a força da
arte. Esse é poder do teatro que, diferente do que pensam alguns, não raro, pode
fazer mais do que uma matéria publicada no jornal, esse que se espalha pelas
ruas servindo de leito para tantos seres humanos.