Monday, June 09, 2014

Nico Nicolaiewsky: a vida interrompida de um personagem eterno.

“Eram duas caveiras que se amavam e que a meia-noite se encontravam....” Esse é apenas um dos trechos das muitas músicas que estão na cabeça de todos os que assistiram Tangos e Tragédias. O espetáculo criado, em 1984, por Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez, chegou a entrar em sua 30ª temporada no dia 9 de janeiro, no Teatro São Pedro, com todos os ingressos praticamente vendidos, mas teve que ser cancelado. Nico Nicolaiewsky que estava hospitalizado no Moinhos de Vento, desde o dia 23 e lutava contra uma leucemia mielóide aguda não resistiu. No dia 7 de fevereiro, a cidade amanheceu de luto com a notícia da morte, aos 56 anos, do ator.
Nelson Nicolaiewsky, seu nome de batismo, nasceu no dia 9 de junho de 1957, em Porto Alegre. Estudou piano desde os 7 anos e, e aos 13, foi aprovado em um teste no Instituto de Belas Artes da UFRGS, onde seguiu seus estudos até os 16 anos. Na década de 1970, aos 21 anos, foi um dos fundadores do “Musical Saracura” um dos mais importantes grupos do Rio Grande do Sul que, infelizmente, teve um único Cd gravado antes de se dissolver.  Em 1984, o Tangos e Tragédias recém estava começando as apresentações quando Nico foi para o Rio de Janeiro, morando lá durante 10 anos e estudando com o maestro Hans-Joachim Koellreuter.
Ao retornar ao Rio Grande do Sul, lançou dois discos solo: Nico Nicolaiewsky (1996) e As Sete Caras da Verdade (2002). O primeiro contém valsas e canções líricas e virou trilha do filme Amores, de Domingos de Oliveira. O segundo consiste em uma ópera-cômica. Em 2007, Nico Nicolaiewsky lançou seu terceiro disco, intitulado Onde Está o Amor? que, diferente dos anteriores, contém músicas de caráter mais pop. O disco foi produzido por John Ulhoa, guitarrista da banda Pato Fu, e além de composições próprias, inclusive canções do Musical Saracura, como "Marcou Bobeira" e "Flor", o repertório incluía releituras de clássicos da música brasileira como "Maluco Beleza" de Raul Seixas, "Ana Júlia" dos Los Hermanos e "Dia de Domingo" de Tim Maia. Conhecido em todo o Rio Grande do Sul, o ator participou de programas da RBS TV e da Rede Globo, como o Galpão Crioulo, tradicional atração de música regionalista do estado. Um dos seus últimos trabalhos foi o espetáculo de 2013 "Música de Camelô", onde cantava sozinho ao piano, canções populares como "Ai Se Eu Te Pego", de Michel Teló, e "Tô Nem Aí", da cantora Luka, Mas foi com o Tangos & Tragédias que conquistou reconhecimento nacional.
Tangos & Tragédias era um espetáculo que reunia música, humor, teatro e muita interação com o público. Os recursos cênicos eram garantidos pela ficção construída em torno dos dois personagens: o Maestro Plestkaya (Nico Nicolaiewsky) e o violinista Kraunus Sang (Hique Gomez), artistas vindos de um país imaginário chamado Sbørnia. Todas as músicas escolhidas, canções brasileiras e sucessos da música internacional, passavam pela comicidade dos dois, criando um espetáculo capaz de agradar diferentes plateias e faixas etárias. O espetáculo foi encenado nos mais importantes teatros do Brasil e recebeu uma versão integral para língua espanhola, apresentada na Argentina, Equador, Colômbia e Espanha. Em 2003, em Portugal, Tangos e Tragédias foi escolhido pelo público como o melhor espetáculo durante o Festival Internacional de Teatro de Almada e, em 2004, como "Espetáculo de Honra". Em 2007, voltaram para uma semana no teatro Tívoli e rápida turnê pelo país. Nesse mesmo ano, o espetáculo foi lançado em DVD.  Em 2011, foi eleito o Melhor Show Popular do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte. As aventuras dos personagens Kraunus Sang e maestro Plestkaya também viraram filme, a animação “Até Que a Sbórnia nos Separe”, do cineasta Otto Guerra, exibida no Festival de Gramado de 2013.
Tangos e Tragédias: as razões do seu sucesso
O espetáculo, que criava todo um contexto imaginário sobre a cidade batizada pelos artistas de Sbórnia, não obteve sucesso logo no início. Durante dois anos foi apresentado em barzinhos de Porto Alegre para pequenas plateias. Só em 1986 faz a primeira apresentação no palco do Instituto Goethe de Porto Alegre com a participação de Dilmar Messias, ator e diretor que encarnou Frantz, um dos primeiros (serão muitos artistas ao longo das três décadas) “sbornianos célebres”. Ainda assim, poucas pessoas assistiram essa primeira temporada. Isso não impediu, porém, que no ano seguinte eles estreassem no Rio e em São Paulo e que em 1988, fizessem a primeira estreia da temporada de verão no palco mais importante de Porto Alegre, o Theatro São Pedro. Hique Gomez atribui o início do sucesso de Tangos e Tragédias a uma entrevista no programa do Jô Soares onde, ao longo dos anos de 1990, eles farão 14 aparições e irão garantir a presença em massa dos porto-alegrenses.
Tratando com humor grandes temas como o amor impossível, a dor-de-cotovelo e outras tragédias do ser humano, Tangos & Tragédias reunia música, humor, teatro e muita interação com o público que insistia em retornar cada vez que o espetáculo entrava em cartaz. Apesar das plateias lotadas, não era difícil encontrar em Porto Alegre quem nunca tivesse visto Tangos e Tragédias, mas poucas pessoas haviam visto apenas uma vez. E o que tornava esse espetáculo tão atraente para o público? Afinal, eram poucos elementos de cenário, apenas dois artistas no palco, um figurino simples e uma maquiagem caricata para reforçar os tipos e, apesar de algumas atualizações, as falas e as canções eram praticamente as mesmas. Para compreender esse fato é preciso destacar a multiplicidade de talentos de Nico Nicolaiewsky. Sua formação musical clássica aliada a sua sensibilidade de identificar o valor da música popular. Nico era músico, cantor, compositor e ator. Afora isso, havia seu indiscutível carisma no papel de maestro, conduzindo homens, mulheres e crianças a cantar junto com a dupla.
De forma irônica, mas sem nunca desrespeitar, debochar ou tentar fazer graça com os equívocos dos presentes, eles conquistavam o público. Os personagens seguiam um roteiro em que um assumia a liderança e o outro reforçava suas ironias. Um maestro que tocava acordeom e que contava histórias trágicas, cheias de emoção, no papel de líder, e Kraunus Sang (Hique Gomez), apoiando ou até mesmo contrariando simplesmente com gestos ou com mudanças de fisionomia e seus olhos expressivos, formando uma cumplicidade profunda e arrebatadora. É a partir dessa simbiose que surge a grande força cênica que é transmitida nas entrelinhas do que é ou não, dito. Nos momentos de tensão dos intervalos entre as notas. Na expectativa do público do que àqueles dois pretendiam fazer no próximo instante. Na capacidade deles de sustentarem esse suspense como longas notas de um instrumento para finalizar com alguma atitude brusca, uma fala simples, levando o público às gargalhadas. E essa mistura entre a qualidade musical dos dois artistas e esse humor ora ingênuo, ora arguto e corrosivo, essa ironia implacável, associada à sutileza das frases poéticas, isso tudo foi construindo esse sucesso que só se torna possível quando atinge o público e esse faz reverberar o quanto é divertido e agradável ver Tangos e Tragédias. Não uma, mas duas, três, dez vezes. Porque as piadas podiam ser as mesmas, mas havia o caráter de improviso a cada apresentação, o que ocorre sempre que o espetáculo valoriza a interação com o público. Não importa se era previsível que alguém seria chamado ao palco. Afinal, ninguém, nem mesmo eles, sabia quem seria convidado a participar e isso tornava aquele momento único. O que Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez sabiam fazer com perfeição era valorizar o efêmero. O público percebia que, independente de todos os ensaios, eles estavam ali presentes, inteiros, executando as melodias com o prazer de uma primeira vez, mas com a eficiência de quem aprendeu a dominar uma platéia.
Talvez, seja importante considerar também que, por mais emocionantes e interessantes que fossem suas apresentações, provavelmente eles não teriam atingido o mesmo sucesso sem todo o imaginário criado em torno da cidade fictícia de onde teriam vindo esses dois talentosos artistas. Citadas pelos dois durante o espetáculo, as características da Sbórnia, seu povo e seus costumes foram rompendo o espaço cênico e, aos poucos, fazendo parte da cultura dos gaúchos. Apresentada no palco, a dança chamada por eles de Copérnico (em que os braços e as mãos ficam imóveis e só a cabeça se movimenta), tornou-se conhecida em Porto Alegre. Aparentemente “non-sense”, a história da Sbórnia trazia traços da realidade econômica e social vigente no Brasil e todos os dados sobre o seu sistema político, o turismo, a moeda oficial da Sbórnia vinham carregados de críticas ao país. Na história do espetáculo, contada pelos próprios autores em seu espaço de divulgação, é difícil identificar o que é real ou foi criado apenas para fazer graça e é justamente essa mescla que torna tudo tão interessante. Não há dúvidas, porém, de que muitas ideias levadas ao palco surgiram a partir das experiências reais dos seus autores. Um exemplo disso, é o relato de Nico Nicolaiewsky sobre o plano de levar para fora do teatro a encenação do Tangos e Tragédias.
Lembro da primeira vez que saímos tocando do teatro para a rua. Nós íamos terminar o show, como sempre, saindo do palco e entrando no camarim. Acontece que o camarim estava trancado e nós não tínhamos para onde ir (o palco nesse teatro – Teatro Cândido Mendes no Rio de Janeiro – dava direto para o camarim, não tinha corredor), então começamos a sair do palco pela única saída que restava que era a saída para a rua e o povo nos seguindo e cantando. Aí nós continuamos a tocar e fomos até a praça. E o povo nos seguindo. A partir daí fazemos igualzinho em todos os shows como se fosse pela primeira vez.”(NICOLAIEWSKY, Nico)
Fato é que, durante muitos anos, Porto Alegre teve a chance de presenciar um espetáculo a céu aberto em uma das áreas mais nobres da cidade, na Praça da Matriz. Juntavam-se àqueles que haviam comprado ingresso, pessoas só para assistirem a essa pequena parte, que já sabiam que, no final, Pletskaya e Kraunnus Sang arrastariam centenas de pessoas para fora e se dirigiam para o local só para assistir essa pequena parte. Assim, a proposta artística de Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez foi levada, literalmente, muito além das paredes do Theatro São Pedro, onde também seria, finalmente, a despedida do Maestro.
Uma enorme faixa preta foi colocada na fachada. Lá, os amigos e pessoas de todas as áreas importantes da cidade foram dar adeus ao artista. O governador Tarso Genro decretou luto oficial de três dias e visitou o local, que pela primeira vez sediava um velório, para também prestar homenagem ao músico. Grandes nomes da música e do teatro foram confortar a família e amigos de Nico como os músicos Nelson Coelho de Castro, Vagner Cunha, Thedy Correa, Sady Homrich, o escritor Luis Fernando Verissimo e a mulher Lucia, o diretor Zé Adão Barbosa, os atores Zé Victor Castiel, Rogério Beretta, a diretora e coreógrafa Carlota Albuquerque e os maestros Antônio Borges-Cunha e Tiago Flores. O caixão estava no fosso que separa o palco da plateia, coberto por um pano preto com a Estrela de Davi, conforme a tradição judaica. Sobre esse, uma manta que Nico ganhou de presente do pai com notas musicais e teclas de piano. No palco, foram colocados uma cadeira vazia e um piano no qual algumas pessoas tocaram como Simone Rasslan, Arthur de Faria e Fernando Pezão. Hique Gomez emocionou tocando violino e anunciando a criação do instituto de “Artes Sbornianas” para preservar a obra do parceiro com quem dividiu 30 anos de palco. Sua filha, a escritora Clara Averbuck escreveu: Eu sempre estive lá, então acho que nunca cheguei a realmente dizer o tanto que eu admiro o trabalho que o Nico e o meu pai fizeram, como aquele espetáculo foi mágico, como era lindo, como me surpreende e deleita a capacidade dele de tocar absolutamente todo o tipo de pessoa, como era um imenso gerador de alegria para todos que assistiam com o incrível poder transformador das coisas feitas com o coração, capazes de fazer multidões entrarem em catarse. Eu sei todas as letras de todas as músicas há anos, sei todos os timings das piadas, tudo. Faz parte de mim. Faz parte de quem eu sou. E eu nunca pensei que fosse terminar. Esse ano, no dia da estreia, meu pai esqueceu um apetrecho fundamental para o cabelo do Kraunus e eu e minha mãe fomos correndo levar no Theatro. O Nico estava fazendo uns acertos com o Levitan e o Pezão, a Gran Orchestra da Sbornia, já prontos pra entrar no palco. Quando me viu, largou o acordeon e me deu um abraço tão apertado e querido que eu quis ficar para ver o espetáculo mais uma vez. Pensei: ah, depois eu vejo. Vai ter sempre. O Tangos nunca vai acabar E não vai mesmo. O Tangos e Tragédias está eternizado no coração de cada um que viu, de cada um que conheceu, de cada um que, nesses 30 anos, saiu cheio de alegria daquele e de outros teatros pelo Brasil e pelo mundo. Agora cabe a nós espalhar e registrar ainda mais a genialidade desse espetáculo que tocou tanta gente. Obrigada, Nico, por tudo. A música nunca vai morrer...”
Durante todo o dia, o teatro esteve lotado não só de pessoas conhecidas, mas de tantos outros que apenas queriam homenagear o artista. As pessoas se acomodavam nas mesmas poltronas onde assistiram tantas vezes ao espetáculo musical e humorístico Tangos & Tragédias, fenômeno de popularidade sem precedentes no Rio Grande do Sul. A sala que sempre estivera repleta de música e risos era, naquele momento, local de silêncio, emoção e lágrimas na despedida de um artista que, embora tenha sido consagrado em um único papel, era reconhecido no meio musical como um compositor de indiscutível talento.

Artur Faria, músico e amigo de Nico, também escreveria nas redes sociais: “Hoje eu pus pedras brancas sobre a terra úmida embaixo da qual jazia o corpo morto do meu amigo. Hoje, e ontem, eu toquei pra ele, com outros amigos nossos, e não tocamos nada, só tocamos. Só deixar a música sair, a música que viesse, música nenhuma, música qualquer. Hoje, e ontem, eu tinha certeza de que ele ia dizer pra gente, com aquele riso de orelha a orelha, o tom mais agudo na voz, meio falando meio rindo: - Baaaaaaah, mas vocês bem que podiam ter ensaiado, né?”(FARIA, Artur, 2014).