Sunday, June 26, 2011

É meia-noite, é meio-dia, é toda hora

Escrever sobre um filme de Woody Allen, sem dúvida, é uma ousadia e revela uma vontade de aparecer. Afinal, ele, certamente, não precisa das minhas palavras. Mas, sem audácia ele não teria chegado onde está, então, para ter pelo menos alguma coisa em comum com este gênio do cinema, vou me atrever. Quase briguei para que não me contassem partes do filme. Muitas pessoas amigas já tinham ido e estavam loucas para comentar. Mas eu não leio nem a caixinha dos filmes que alugo e não queria saber nadinha. A única coisa que chegou aos meus ouvidos é que, nos primeiros minutos de filme, a gente via uma boa parte de Paris. Não deu outra. Eu, que só sonho em voltar àquela cidade, suspirava com tais imagens. Ver lugares bonitos é ótimo, mas reconhecê-los é ainda melhor.

Logo em seguida, a gente começa a ouvir a fala de um dos atores. Tive a nítida impressão de que era Woody Allen. Aquela maneira insegura, ansiosa de falar, vacilando entre pensamentos e palavras e sempre se questionando. O plano abre e vejo que me enganei. Lá estava aquele ator moço, louro que vi em vários filmes bobinhos. O nome dele? Não fazia a menor idéia. E do que se trata? O que é fantástico é que não é um filme com uma história muito profunda, mas isso, porém, não quer dizer que não seja complexa. Aliás, saí do cinema pensando o que seria do filme para quem não tem todas as referências aos famosos escritores e artistas que vão aparecendo ao longo do filme. São muitos. Eu mesma perdi pelo menos dois dos quais nunca tinha ouvido falar e que agora não lembro quais eram. Picasso, Dali, Cole Porter, Modigliani, Zelda e Scott Fitzgerald, Hemingway, Lautrec... a maioria representada por atores que não reconheci e cuja a aparência lembra, exatamente, os personagens. Carla Bruni não passa despercebida mesmo em um pequeno papel e Marion Cottilard sempre que aparece na tela me convence de que hipnotizaria qualquer homem, como acontece neste filme. Identifiquei também Kathy Bates, que há muito me conquistou como atriz, e que aparece como Gertrude Stein. É ela que fica encarregada de ler o texto do protagonista que faz sucesso no cinema, mas que gostaria mesmo é de ser escritor e morar em Paris. Mas mais surpresa do que com os nomes famosos que foram aparecendo fiquei com o ator Owen Wilson (é este o seu nome) que veste a pele de Woody Allen com perfeição. O cineasta nos dá a chance de ver Paris, visitando locais extraordinários, em épocas de glamour.

Bem, mas não pretendo, porém, ficar aqui contando a história. Assim como eu, imagino que muita gente ainda não tenha ido ver e que está perdendo uma ótima oportunidade de rir, ao mesmo tempo em que filosofa, o que é uma capacidade absolutamente impecável deste cineasta. Enquanto somos conduzidos, por um roteiro que permite viagens no tempo apenas com o badalar dos sinos de uma igreja à meia-noite, somos também levados a perceber os erros de nossas crenças existenciais. Ver Woody Allen nos diverte e nos liberta. Ele nem se preocupa em tentar dar uma explicação racional ou coerente para as fantásticas aparições e nem nós precisamos dela para compreender. Saímos do cinema tendo tomado um banho de cultura e erudição associadas à leveza da comédia. Isso é ou não genial?


Friday, June 24, 2011

Cego é aquele que não quer ver

Já comentei outras vezes que, embora tenha decidido estudar teatro, sou apaixonada por cinema. A justificativa é que quando um filme é ruim eu não chego a sair antes, mas não fico constrangida. No caso de um espetáculo, sim. Porém, não há nada comparado ao teatro quando este é bom como no caso de Rei Cego, do Teatro do Clã. Tenho tido preguiça de assistir. A correria anda grande e foi assim, meio devido à obrigação, que fui parar na platéia deste espetáculo. Ainda bem.


Outro dia, ouvia de um amigo, também com formação em Artes cênicas, que as pessoas estavam esquecendo de que o teatro tinha que contar uma história. Não queria criar conflito, mas, por dentro pensei: não concordo com isso. Já assisti a muitos espetáculos que me provocaram experiências interessantíssimas, mas que saí sem saber do que se tratava exatamente. A arte contemporânea tem uma proposta diferente em relação a isso.
O Rei Cego conta uma história. Daquele gênero de “capa e espada” que eu ouvia quando era pequena. De heróis e bandidos, de homens bons e maus, de gigantes e mistério. Não é, no entanto, uma história surpreendente, impactante. Nada disso. Uma história simples. Porém, a forma como ela é contada é que merecia o meu “bravo” no final. Por quê? Bem, vejamos. O cenário é simples. Entretanto, nos levam a imaginar vários lugares e permitem aos atores todos os deslocamentos necessários para nos convencer daquilo que está sendo dito. Não é realista, mas concretiza para os espectadores todas as imagens que dão ritmo a atuação do elenco. Por falar neste, está composto por três atores e atrizes que fazem vários papéis (nove personagens) e todos convincentes. É um elenco parelho. No bom sentido do termo. Ninguém se destaca, mas todos impressionam e conquistam o público. Não é para menos. Eles cantam, dançam, fazem piruetas e... atuam. O texto é dito claramente, expressivamente. Todos os movimentos são sincronizados e executados com perfeição. Nada nem ninguém entra ou sai da cena por acaso. E assim, eles vão conduzindo a plateia pela passagem do espaço e do tempo, estabelecendo uma dinâmica leve e contundente ao mesmo tempo. Em destaque, ainda, os elementos cênicos como “o gigante” que aparece e desaparece com simples movimentos dos atores, dois braços e uma cabeça. Ah, às vezes, esqueço do figurino. Justamente quando ele é adequado, correto e auxiliam a tornar os atores os personagens que eles representam. O mesmo acontece com a luz. O espetáculo tem uma dinâmica que só um bom diretor pode garantir. Difícil acreditar que seja o primeiro espetáculo do grupo. Que ótimo que eles tenham sido escolhidos pelo Projeto Nova Coras e, nestas horas, quer dizer 55 minutos, tenho a certeza de que nenhum filme valeria tanto a pena.



Sunday, June 19, 2011

Sessão de muita classe, história, arte e cultura

Sonhei com coisas na vida que não se realizaram, mas, em compensação, vivencio outras que jamais poderia imaginar. Quando assistia aos muitos eventos dos quais já participei como ouvinte, não pensava que, um dia, seria amiga de palestrantes. Porém, nesta quinta-feira, fui ver cinco, dos quais três fazem parte, hoje, das minhas relações. Então, chega a ser engraçado ver eles lá, distanciados pelo formato da apresentação, com cadeiras no foco, copos d’água ao lado, ou seja, no palco. Isso sem falar das pessoas envolvidas com a organização que também conheço e que me recebem calorosamente, como Laura Backes.

Sessão da classe recebe os convidados com vinho e café, o que em noites mais frias já é um aconchego. A abertura ficou por conta da coordenadora Nádia Maria Weber Santos. Doutora em História da UFRGS. Bem, quem olhar o meu currículo vai ver que já fui aluna deste curso. Sempre gostei muito de história. Tendo como professor no Instituto Educacional João XXIII Voltaire Schilling acho que não poderia ser diferente. Como jornalista, achava que seria muito bom associar as duas coisas. Mas acabei desistindo ao perceber que teria que passar primeiro por todas as cadeiras da pré-história e da história da antiguidade até chegar ao contemporâneo. Ficava muito puxado ir ao campus naquela época. Porém, minha paixão nunca arrefeceu.

A primeira a falar foi Alice Dubina Trusz, também doutora em história pela UFRGS. No tema dela mais um assunto que sempre me atraiu: cinema. Como ela mesma conta, a fonte de informações foi os jornais. Ou seja, ela mesclou em sua pesquisa teatro, cinema, história e jornalismo. Como eu não iria gostar? Despretensiosa já ganhou minha simpatia quando riu de si mesma por estar ali já que não trabalhava com memória, nem com teatro, nem com a efemeridade. Sua pesquisa foi sobre cinema como espetáculo entre 1896 e 1908. Ela teve que ir aos jornais para resgatar esta história de uma época em que o cinema era novidade e que precisava acontecer junto com outras atividades como o circo, o teatro, as feiras. E por não haver como registrar isso por imagens, os jornalistas tinham necessidade de descrever detalhadamente o que acontecia. O cinema aparecia junto com gêneros espetaculares como as touradas. Touradas? Nem sabia que tinha isso por aqui...Em seguida, ela explicava que não era para imaginar um cinema como o de hoje. Ela estava falando de um projetor chamado Lanterna Mágica que mostrava imagens fixas. Foram 30 anos destas experiências. “Uma espécie de Power point dos dias de hoje”, disse ela, arrancando risadas da plateia. Cheia, por sinal. Acho que ela conseguiu informações interessantes justamente por ter se colocado no lugar do espectador, como ela disse. Ela contou que, mais tarde, o cinema se sedentariza. Isso quer dizer: vai ocupar os espaços teatrais, acontecendo em um lugar físico confortável. E tinha que ser já que isso significa duas horas com intervalos. Tinha dia para ir aos cinemas. Foi em 1908 que surgiram as salas pequenas legitimadas como espaço de cinema, havendo uma regularização e chegando ao que conhecemos hoje.

Depois dessa aula entusiasmada de Alice Trusz sobre cinema sem que ela tivesse necessidade de consultar seus escritos, foi a vez de Betha Medeiros. Ela começou fazendo uma reflexão interessante sobre a questão do tempo, pois, até então, achava que sua pesquisa sobre o espetáculo Reis Vagabundos encenado há 28 anos era antiga, mas vendo aquela do início do século, era obrigada a mudar a sua percepção. Betha não parte da suposição que todos conhecem a história da mitologia grega de Penélope que prometeu se casar de novo quando terminasse uma peça em seu tear e a explica para falar da metáfora entre o nome do grupo e a situação de sua pesquisa.Gosto da franqueza dela que conta sobre os seus devaneios e seus insights em lugares insólitos. Suas relações levam a considerações sobre o teatro falado que leva ao corpo do ator e ao corpo criador do século XXI. O discurso de Betha é recheado de onomatopéias (vruum, diz ela). Ela também chega aos jornais quando conta que pouco era guardado do material sobre os espetáculos, que as fotos iam parar nos setores de divulgação da imprensa. Bem, a prova disso é o quadro que tenho na minha parede com fotos de filmes hollyoodianos. E ela também não teve como escapar de outra prática da comunicação: as entrevistas. Segundo ela, estas foram gerando uma polifonia, um imenso quebra-cabeça. Fiapo, o cenógrafo do espetáculo, lembrou que não conhecia a palavra clown e que eles faziam um trabalho de improvisação como mendigos, catadores de lixo nas ruas, mas que, um dia, Maria Helena Lopes chegou nos ensaios com os “narizes” e tudo mudou, fez-se a mágica. Betha não esconde a admiração que tem pela diretora (que estava presente aquela noite na Álvaro Moreira) e que se revela ainda mais neste momento. Ela reforça que se tratava de uma peça sem texto e que, no entanto, provocou fortes e inesquecíveis impressões. Mesmo em sua pesquisa acadêmica Betha se deu a liberdade de criar seus próprios títulos e fala de suas conclusões, quer dizer, de seus “alinhavos”. Ela faz uma rápida associação da pesquisa anterior e comenta que vai mostrar a SUA lanterna mágica. Projeta fotos do espetáculo e a música enche a sala mostrando a força daqueles registros resgatados pelo seu trabalho apaixonado, provando que estas duas coisas podem, sim, ser misturadas.

A próxima a falar é também minha colega de mestrado, Cibele Sastre. No Facebook Laura havia dito que ela explicaria Laban, ao que eu comentei que tinha medo. Ela reaparece com o seu ótimo título: Nada é sempre a mesma coisa. Sua saia longa e seu corpo longilíneo de bailarina me lembram Julie Andrews como Mary Poppins.Traz uma velha brincadeira nossa de dizer que “cada um no seu icosaedro”, uma mistura do popular com o acadêmico que nos ajudava a suavizar a tensão da época. Coisa que me parece muito bem resolvida agora em seu momento de doutorado quando ela diz que foi buscar “alguns amiguinhos” ao se referir a Foucault. E Cibele foi mesmo além. Ela já não fala só da notação de movimento de Laban, mas de sua apropriação. Comenta o quanto o coreógrafo ajudou no registro e difusão da coreografia e eu lembro a primeira vez que vi os “desenhos” do trabalho dela e o quanto tudo aquilo era, absolutamente, estranho para mim. Hoje, graças a ela, já sei do que ela fala e até me surpreendo pensando porque achei tão complicado compreender que se existe partituras para a música, nada mais natural do que haver também para o corpo. Quer dizer... isso depois de Laban ter feito o que fez e Cibele falar disso sempre em sala de aula, é claro! É isso: o coreógrafo criou estes códigos para compartilhar os movimentos do corpo. Mas Cibele não se contentou com isso. Em sua pesquisa, usou este código, que até então era uma tarefa de movimento, como motor de um processo, como um dispositivo, como ela mesmo disse. Seu Power point com as imagens não funcionou. Ainda bem. Mal sabe ela o quanto foi prazeroso vê-la levantar e usar o próprio corpo para explicar do que ela estava falando. Se sua fala ainda não tinha convencido alguém, não tenho dúvida de que aqueles movimentos perfeitos, aquela consciência corporal exata e ao mesmo tempo flexível, fizeram isso. Mesmo sendo fã das novas tecnologias, não há nada como alguém “ao vivo e a cores”.

A próxima palestrante, doutora em história, Maria Luiza Martini teve dificuldade de começar a sua fala tamanha era a sua emoção. A conversa dos demais havia provocado nela muitas lembranças e ela se esforçou para conter as lágrimas e a voz saiu embargada. Ela começa falando da importância da história cultural ter dado espaço para esta mistura com a arte. Recorda sua professora Sandra Pesavento e sua batalha para este reconhecimento. Ela diz que, enquanto a história está sempre se esforçando para expressar como foi, a memória é fazer aparecer o efêmero da ficção. Sua fala é empolgante, cheia de energia e isso se revela em frases como “eu me agarrei neste pedaço”, dita sobre a questão da evocação da memória, da qual fala Izquierdo. Ela fala de algo que conheço muito bem, mas que jamais tinha ouvido ser chamado assim: as categorias sintáticas, ou seja, quem, como, quando, onde. Aos poucos, ela vai falando das suas lembranças sobre os espetáculos e conta que, em um, ela sabia onde e como estavam quase todos. “Faltava apenas a cabeça do Damasceno”, disse ela. Até que alguém disse para ela que, durante o espetáculo, ele usava uma máscara africana. Ela reforça a ideia de que para que possamos lembrar é preciso compartilhar o passado, pois a memória não vem completa. São aparições e no movimento de aproximação, elas apresentam falhas. Segundo ela, é preciso aceitar “o caráter lacunar e não ter medo de ter estas visões”. Maria Luiza segue recordando e fazendo análises sobre estes registros. Comenta também que ela tinha uma forte lembrança da presença de um carrinho de bebê, mas que, depois, percebeu que se tratava apenas de um pequeno gesto que era feito com as mãos, insinuando alguém pegando o carrinho. Lembrou também Susana Saldanha que vendia um fogão imaginário mas que a partir de sua relação com o público ia se “materializando”. Ela disse que Susana se ofendeu por ela não lembrar do fogão, mas que também não lembrava onde ela estava no palco até que alguém disse que era em uma fila, mas que para saber mais detalhes precisaria encontrar algum outro ator que também estivesse com ela. Ela enfatiza este caráter da troca e fala em “historiografar as emoções na arte e na memória, partindo do contexto evocativo. Fala em fazer uma “rede Scherazade”[1] e, diferente de Betha, não rememora do que se trata, o que, naquele momento, me deixa meio perdida, enquanto a plateia ri.

Meu amigo Newton Pinto da Silva ficou por último. Ele faz rapidamente uma recapitulação da sua ligação com o teatro e comenta como chegou ao Acervo de 24 programas da TVE que apresentavam espetáculos teatrais e entrevistas com os atores de 1987-1990. Ele intercala a sua fala com pequenos trechos destes. Assim, vemos Tangos e Tragédias, A mãe da miss e o pai do Punk, Ostal, entre outros, incluindo A verdadeira história de Édipo Rei. Este espetáculo provoca sempre a minha memória, pois assisti em meu primeiro emprego quando trabalhei de assessora de imprensa na SAT em Tramandaí. Devo ter no meu arquivo um jornal do clube com uma matéria sobre esta apresentação. Para mim, isso é mais uma prova de como fatos e pessoas estão mais entrelaçados do que podemos imaginar. Bem, mas ele fez recortes dos sete espetáculos pesquisados. Niltinho, como o chamam as pessoas ligadas à cultura na cidade, não apenas resgatou este material, mas partiu para as relações com a historiografia, usando para isso, como ele sempre gosta de frisar, os conceitos de Michel de Certeau, entre outros importantes autores. Fez um trabalho profundo selecionando, editando, reagrupando as imagens. Ele revela parte do processo para chegar aqui, partindo da seguinte pergunta: “como deixar falar estes documentos?”. A partir disso, não sem muitas dúvidas a serem solucionadas, ele criou nove categorias e elaborou um painel da cena teatral do período, onde aparece a força da estética experimental, a variedade de repertório e o hibridismo de gêneros. Para mim, foi muito bom ver que ele já resolveu internamente as dúvidas que tinha e fala agora com orgulho dos resultados. É fácil perceber que ele já se apropriou dos pensamentos de todos aqueles que antes eram ilustres desconhecidos. Tanto é assim que se ao ser convidado ele se questiona sobre o que irá falar, depois quer até passar do tempo e tira risos da plateia quando diz que fez duas páginas de justificativa para o uso de imagens que não eram do programa.

Muitas vezes, quando termino meus textos, penso que fiquei escrevendo eu, eu, eu, mas, acontece que, apesar de ter gente que diz que eu escrevo críticas, crônicas, eu digo que são relatos. Para mim, é como o que eu escrevia nos meus diários aos dez anos só que agora não fica mais nos meus cadernos dentro do armário. Vão para os blogs. Aliás, a tecnologia é outra paixão minha e não é para menos, afinal, quem quiser saber muito mais, sobre todos estes temas basta acessar: link http://maisteatro.blogspot.com/2011/06/sessao-da-classe-apresenta-memoria-do_10.html.
Eu recomendo.


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[1] Lenda de Scherazade que seduz o rei com suas histórias o que o impede de mandá-la assassinar.

Saturday, June 11, 2011

Entre o velho e o novo... fica a vontade de ver de novo

Confesso. Vou ver o grupo Farsa procurando achar defeitos e problemas no espetáculo. Por que? Porque tenho na minha mente de jornalista a busca pela  imparcialidade. E como tenho uma queda pelo Molière por ser francês, sou amiga de quase todos no elenco, do diretor e uma forte tendência a já gostar do que eles fazem sem ver, fico lá catando alguma coisa mal feita. Pura perda de tempo.
Cheguei a estranhar a luz para depois perceber que era uma escolha pensada e propositalmente usada de modo muito inteligente. Assim como outros recursos que prefiro não comentar para não estragar as surpresas. Mas, imaginem que o figurino é basicamente preto e branco e que o cenário é praticamente vazio. Algumas cadeiras, uma mesa... e que os atores, várias vezes, se posicionem no palco como na época do classicismo francês: de frente para o público, os pés fixos, movimentando basicamente a parte superior do corpo. Quando estudei isso, imaginava que devia ser terrível. Não com este grupo. Muito pelo contrário. Toda esta marcação, precisa, demonstra o quanto de trabalho tem por trás e acaba tornando a encenação ainda mais engraçada. O que, aliás, não é nada difícil com Lucia Bendati no elenco. Agora quem recebeu de presente um ótimo personagem foi Ariane Guerra. Isso, porém, não quer dizer que ela não tenha o incrível mérito de ter aproveitado da melhor maneira possível. Ela se sobressai mesmo sem estar no foco. Não chega a roubar a cena porque esta é outra boa característica do Farsa. Eles são generosos uns com os outros.  Não há disputa. Eu diria até que é possível sentir a satisfação que um tem quando vê que o outro está se saindo bem no palco. Como Elison Couto que, como Tartufo, mostra o seu lado camaleão deixando totalmente para trás o avarento do último espetáculo e assumindo o safado e inescrupuloso papel escrito pelo dramaturgo francês. E o Grupo Farsa prova, mais uma vez, que ator não tem idade. Pode ser filho, mãe, neto. Se for bom, vai convencer. É isso que faz Laura Leão no papel de mãe do personagem de Marcos Chaves. Este, além de atuar em um papel bem diferente do que fazia  no Avarento, ainda é o responsável pela parte musical do espetáculo. Parte importante, inclusive, que coloca uma banda no palco e que traz contemporaneidade à obra do século XVII. Em 1664, Tartufo quase foi proibida pelos devotos da época, influentes no reino de Luis XIV que sentiram ofendidos pelo espetáculo. A peça, considerada uma das mais famosas de Molière e que provocou o surgimento até de novos adjetivos, segue muito atual já que é uma crítica à hipocrisia, à falsidade, escondida sob a religião. Afinal “tartufice” é o que não falta por aí. Felizmente, o grupo não passou pelas mesmas dificuldades de Molière que foi obrigado a muitas tratativas com o rei para conseguir que sua peça continuasse a ser encenada.
Essa possibilidade de fazer rir mas também denunciar deve provocar ainda mais prazer em Gilberto Fonseca que, além de diretor, é também educador e crítico do papel da arte na sociedade atual. Lembro dele inquieto com a falta de valorização da arte, se questionando sobre continuar ou não a fazer teatro. Não sei se Gilberto ainda se pergunta sobre isso. Provavelmente sim, pois é uma das maneiras de continuar fazendo coisas boas, mas eu não me pergunto mais porque vou assistir. E olha que ainda não desisti de ser imparcial porque, pensando bem, Tartufo está tão lindo naqueles ternos...