Em dúvida se fazia um relato do meu último dia de Festival ou se comentava o espetáculo que assisti no sábado, resolvi fazer as duas coisas. Três, na verdade, porque incluo aqui o debate sobre a peça. Afinal, elas estão mesmo misturadas. Aliás, diria que meu comentário já está contaminado pelo que ouvi de Walter Lima Torres e André Carreira, analisadores dos espetáculos. Mas prometo que tentarei deixar claro quando a fala não for minha.
Sábado, fui assistir Ascensão e queda de Mahagonny. Quem me conhece sabe que não tinha nenhuma informação sobre o espetáculo ou a companhia. Era o que tinha para assistir, então, comprei o ingresso e me dei por satisfeita por conseguir um lugar bem na frente. Adoraria poder dizer que já conhecia o texto ou mesmo que sabia que era uma peça de Brecht. Mas se sabia, não lembrava o que, infelizmente, acaba sendo a mesma coisa. De qualquer forma, estou certa de que não havia visto nenhuma montagem antes. Fiquei surpresa ao ser informada que Irene Brietzke tinha colocado esta peça em cartaz nos anos 80, que Mirna Spritzer estava no elenco e que Humberto Vasconcellos havia falado dela em sua dissertação de mestrado. Mas isso tudo foi depois de eu ter assistido. Informações repassadas por meu colega de mestrado e de profissão, Newton Silva, seguidamente mais atento do que eu.
Eram muitos atores no palco. Homens e mulheres. Contavam a história de uma cidade onde tudo era permitido, desde que fosse pago. Os atores cantam e alguns, muito bem por sinal. Há uma série de propostas cênicas e soluções estéticas interessantes como a lista de produtos que cai do teto, bem como uma grande quantidade de objetos. Uma boa parafernália, eu diria. O figurino é bastante adequado aos seus personagens que obedecem ao que é chamado de personagem tipo e, fiquei sabendo (no debate), pelos elementos que Brecht costumava utilizar. Leia-se: suspensórios, chapéu coco e até um ringue em uma determinada cena.
Tinha uma movimentação intensa e a tal contracenação, que faltou no espetáculo anterior, acontecia. Era divertido também. Algumas coisas, realmente, engraçadas, outras surpreendentes. E a capacidade de ocupação do espaço cênico de forma dinâmica e constante realmente impressionava.
Chamou minha atenção também o equilíbrio dos atores em termos de atuação. Era um grupo coeso e bom. O que é bastante incomum em montagens com tantos personagens e com gente tão jovem. Acabei sendo informada que o que vi foi um trabalho elaborado por estudantes da Universidade de Campinas. Recém formados, seguem com a montagem. Sendo assim, as possíveis críticas que tenho, devem ser atenuadas, pois não é justo um nível de cobrança tão alto de pessoas que estão em processo, embora, a gente saiba que, para quem faz teatro, este jamais termina.
Bem, apesar de não ter me aprofundado em Brecht, trata-se de um nome que sempre aparece para quem tem a pretensão de entender um pouco de teatro. E daqueles que não é simples de compreender, principalmente, escolher um texto dele para uma das primeiras montagens, mas tinha em mente que ele fazia um teatro questionador, com destaque para aspectos sociais e econômicos, visando uma maior consciência dos espectadores. Usava para isso de ironia, de sarcasmo, além deste formato musicado. E eu senti falta disso. Por pouco não saio achando que Paul Ackermann, o lenhador do Alasca que chega a cidade, devia mesmo ir para a cadeira elétrica. Afinal, após ter contraído dívidas, não tinha dinheiro para pagá-las. Claro que dou uma certa exagerada, no entanto, o capitalismo é uma ideia tão forte, já tão incorporada que obscurece a percepção de que tal decisão foi tomada, na verdade, por uma justiça corrupta. Talvez fosse preciso um outro tempo de cena, algumas pausas... Algo que nos permita refletir rapidamente sobre o que está se passando até porque Mahagonny não é um lugar específico, geograficamente importante. Ele não é lugar algum e é todos os lugares.
Assim, embora eu tenha me divertido, embora tenha ficado impressionada com a atuação de todos e admirado soluções cênicas irreverentes como a da destruição das cidades pelo tufão) quando placas de isopor vão sendo “devoradas” por um ventilador que não alcança a placa de Mahagonny), pensava se o grupo tinha consciência desta escolha por um humor mais superficial do que, provavelmente, propunha a obra de Brecht. Fez eu me lembrar de uma história que Sergio Silva gostava de contar de uma atriz que, ao interpretar a Madame Blanche, em Um Bonde chamado desejo, em suas últimas falas cometera um equívoco que comprometia todo espetáculo. Na hora de dizer: “eu sempre dependi da bondade de estranhos”, o que tinha um tom patético que justificava a “patologia” da personagem, a atriz, optou por dizer isso com leveza. Uma frase, segundo Silva, bastou para arruinar o final. Neste caso, não foi para tanto e, talvez, seja importante dizer que o público reagiu bem ao espetáculo apresentado em Blumenau, no qual me incluo.
Dia seguinte: o debate
Fazia tempo que não participava deste tipo de atividade. Durante muitos anos, no Festival de Gramado, tive a oportunidade de estar presente tanto aos filmes quanto as discussões na manhã seguinte. Acredito até que minha “formação” estética e artística tenha sido influenciada por todas as coisas ditas naquelas manhãs de inverno por pessoas não só do Brasil como de outros países.
Feita uma rápida abertura, a palavra foi para o ator Artur Kon. Ele explicou que a montagem da peça havia sido feita em 2008, ainda na Universidade, que o diretor Marcelo Lazzarato, já havia montado Brecht e tinha proximidade com este autor. Disse que eles achavam que seria interessante tomar contato com este teatro, pois sabiam que era importante. Destacou a importância de uma semana intensiva que tiveram com Marcio Aurélio (?). “Foi um período que mudou nosso pensamento sobre teatro”. Trabalharam com três textos e acabaram decidindo por Mahagonny e por uma “encenação mais vertiginosa”. De qualquer forma, eles resolveram montar a Companhia de Teatro Acidental.
A palavra então foi para Walter Lima Torres, doutor em teatro pela Sorbonne, entre outras muitas funções. Walter começa a sua fala parabenizando a companhia, pela ousadia. Por se aglutinarem em torno de alguma coisa, pois, segundo ele isso é muito importante. (Recentemente, Edélcio Mostaço inseriu em meu texto a palavra aglutinador e eu sorri pensando que não era um termo do meu vocabulário. Pelo jeito, está na hora de passar a ser). Walter segue dizendo que o espetáculo tem uma forte comunicação com o público e começa a dar informações históricas sobre o texto e sobre o autor. “Foi apresentado pela primeira vez em 1927, inicialmente com seis canções. Durava meia hora. Depois, Brecht mexe com a estrutura da ópera, trazendo, antes de tudo, um teatro musical inovador com forte influência do teatro não aristotélico. Era a velha ópera, agora em teatro narrativo no qual o homem podia tomar consciência de que suas desgraças não são eternas, mas históricas.
Segundo ele, o espetáculo apresentado “tem uma grande qualidade que é a alegria, a vivacidade e o entusiasmo que supera as deficiências vocais. Cantar em um registro outro que não o tradicional”. Feitas estas colocações, ele observa que os atores, por estarem preocupados em fazer acontecer a encenação da obra, se esquecem da possibilidade de problematizá-la nas relações entre os personagens, explicitando as atitudes e as relações sociais. Ou seja, ela acaba de dizer o que eu comentei acima, no mínimo, de uma maneira muito mais educada e embasada teoricamente. Deixa estar...um dia, eu chego lá. Mas ele não para por aí. Comenta que a atuação dos papéis se dá em um único plano e segue para um registro que nos é mais conhecido e familiar que é o tipo e que não explora as contradições possíveis destes mesmos papéis. E não satisfeito, ele exemplifica. “Neste sentido o tufão e a lua vão ao encontro de certa precariedade que poderia ser mais enfatizada, buscando um referencial mais brasileiro como Serra pelada. Ele explica que eles poderiam contemporaneizar, ao invés de tentar seguir a concepção original. Algo que pudesse estimular uma crítica mais ácida, induzindo além de Mahagonny. Walter indica a busca de arquivos no Google sobre Emir Kusturica (Não fazia a menor ideia de quem era. A menina do meu lado até corrigiu o jeito que eu escrevi este nome).
É a vez de André Carreira, doutor em teatro e professor da UDESC, falar do espetáculo. Começa dizendo que é bom poder “contemplar o aprendizado no exercício da montagem”, que o desempenho é bastante desenvolto, que há empatia com o público, mas que a escolha pelos personagens tipo é uma qualidade do espetáculo ao mesmo tempo que deve ser repensada. Segundo ele, as obras de Brecht sempre nos impulsiona para outro lugar que não é a montagem, mas que seria interessante saber qual o plano de conexão entre a atuação e o contemporâneo. Diz que há uma série de pecados que não estão contemplados na encenação. Fala que a história do garimpo, sugerida pelo Walter, é tão ou mais violenta que a febre do ouro. E pergunta: De que pecados falamos hoje? Salienta que o uso de elementos no espetáculo se preocupa com o sentido histórico de Brecht e que o uso da música dos anos 60 faz um cruzamento de tempo, mas não nos põe com o pé no hoje. Porém, comenta que todos nós temos a nossa versão do espetáculo, que ele não está ali para dizer a sua. Suas colocações me parecem extremamente pertinentes e ditas de uma maneira bastante tranquila.
Talvez, por isso, o porta-voz do grupo, Artur Kon, diz que não pretende se justificar, que é muita coisa para absorver. Assim, se a falta de maturidade pode ter atrapalhado em algo a concepção do espetáculo, ela aparece em um momento bastante delicado para qualquer artista: o da crítica ao qual, porém, Artur reage de forma muito educada e inteligente. Ele apenas acrescenta algumas informações dizendo que o cenário, o figurino, a ideia de usar a música dos Beatles surgiram deles e que acreditavam que utilizar o personagem tipo traria maior flexibilidade. Além disso, ele fala que esperavam que o espectador trouxesse suas próprias referências contemporâneas. Faz sentido. Ao invés deles ficarem tentando especificar situações do hoje, colocam na mão da plateia esta tarefa. No caso do Walter parece que funcionou.
A partir disso, surgem os comentários dos demais participantes do debate. Inclusive o meu. Falo sobre o trabalho do Humberto e da montagem de Irene, na verdade, para entrar em acordo com o que já foi dito pelos outros dois professores, ou seja: falta aprofundar o caráter provocador do espetáculo. Ao falar, porém, tomo cuidado para não desmotivar um grupo tão “guerreiro”, pois, sem dúvida seria uma pena. As outras pessoas que falam (e que não saberia identificar) falam que a forma escolhida para mostrar a exploração feminina causou incômodo, dizem que é preciso se perguntar “o que fica? Como se transforma?”. Narciso Telles, doutor em teatro mineiro, elogia o espetáculo e acredita que seria produtivo auto questionamento enquanto sujeito/artistas e que pode ser bom abrir mão do material técnico do Brecht.
Quando os representantes do grupo retomam a palavra é para dizer que eles estão em um processo de amadurecimento e que os apontamentos feitos vão ser interessantes. Eles tiveram que reorganizar o espetáculo, pois, no período de universidade eram muito mais atores no palco do que é hoje. São feitas afirmações divertidas sobre as movimentações cênicas: “Temos que ensaiar bem, pois se não a gente tromba”. E há algo que é dito que parece muito significativo do momento: “Até então, era um trabalho universitário. Agora é uma proposta artística”. Lembrei de um diretor, meu amigo, que dizia que tinha que pensar qual era o teatro que ele queria fazer.
Carreira retoma a palavra para dizer que é preciso se aproximar destes autores clássicos como Shakespeare, Beckett, Nelson Rodrigues, distanciando-se do mito. Este deve ser assassinado. Considera que só há sentido em montar um clássico se este for atualizado. Confesso que eu tenho um certo medo quando isto é dito, pois, em geral, isso significa colocar roupas contemporâneas, rock como trilha sonora. O que, imagino, não seja o que Carreira está tentando dizer.
As respostas do grupo são bem bacanas. Eles comentam que ainda estão discutindo o que querem dizer em cena, que a cada apresentação mais coisas aparecem, que muita coisa a gente não tem ideia de como responder, pois é mais uma provocação, que eles estão querendo se constituir como companhia de teatro. Um dos atores comenta: O teatro se faz a cada momento, a cada dia. O que eu tenho e coloco. É preciso tirar o peso, o medo e ir para a cena. A cada dia se faz e uma descoberta do que fez. Às vezes, eu não sei onde eu vou.
Gostaria de ter ficado mais no Festival. Pois, a medida que o tempo passa, a gente vai fazendo contatos, as caras vão ficando conhecidas, mas tive que vir embora, não por falta de disponibilidade, mas porque, como em Mahagonny só pode ficar quem paga!
No mais ficou um sentimento que até já foi transformado em música, então, reproduzo aqui:
Só uma coisa me entristece
O beijo de amor que não roubei
A jura secreta que não fiz
A briga de amor que eu não causei
O beijo de amor que não roubei
A jura secreta que não fiz
A briga de amor que eu não causei
Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fizNada do que eu quero me suprime
Do que por não saber ainda não quis
Tanto quanto o que não fizNada do que eu quero me suprime
Do que por não saber ainda não quis
Só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri
Aquela que meu coração não diz
Só o que me cega, o que me faz infeliz
É o brilho do olhar que eu não sofri
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