Saturday, October 31, 2009

Da frustração a fruição

3º dia. O plano era chegar atrasada. Sim, sou destas que planeja o atraso. Queria levar minha mãe à rodoviária. Com mais de 75 anos, ela segue trabalhando, divulgando os Jogos Boole (www.jogosboole.com.br), criados pelo meu pai. Já tinha feito os contatos com as escolas que queria, feito algumas vendas, o que a faz trair a língua que ama e dizer: “yes,yes,yes”, enquanto comemora a ação bem sucedida. Não podia se permitir ficar até o final da semana por aqui. Mas como as atividades da Jornada começam as 14h, achei que ainda teria muito que assistir. Só que não foi bem assim.

Frustração um – o tema de hoje era Literatura, teatro, música e novas tecnologias. Faltava apenas a fala de Eloy Fritsch e isso porque ele teve problemas com a tecnologia (estava demorando...). Assim mesmo o que vejo é interessante. Na tela Clair de lune, tocada virtualmente. Logo depois, Fritsch recupera informações históricas. As primeiras experiências da música eletrônica. Chega na música acusmática (como dizia uma amiga minha: é para comer ou para passar no cabelo?) Fala em cinema para o ouvido. Divertida esta imagem. Chega no rock, nos Beatles e Pink Floyd. Mas é quando ele fala em Rick Waykemann que meu interesse aumenta. Daí, ele cita Jean Michel Jarre. Bem lembro o impacto que estes nomes causaram na época. Também, não foi à toa. Frisch diz que este último levou três milhões e 500 mil pessoas para ouvir sua música em Moscou em 1981. O maior número até hoje. Mostra instrumentos sendo tocados por dedos em telas planas. Penso na importância dos dedos, do toque para esta época tecnológica. Claro...Não sou eu que falo todo tempo em digital? Apresenta novas interfaces com vídeos do youtube como a escada piano, uma experiência em Estocolmo e termina com o piano controlado por ondas cerebrais de Eduardo Miranda, na Inglaterra. Ok. Também não sei como isso funciona. Entrem aí no Google e pesquisem, ora bolas (expressão da mesma época de “bananices”)!

Fruição um - Vai falar Alcione Araújo. Bem, preciso dizer que bastaram algumas horas para que este cineasta me conquistasse e, olha que não me acho tão fácil assim. Azar é o dele. Ele nem abriu a boca e minha expectativa já e grande. Vai falar de que? Teatro o que, segundo ele, trata-se de gente imitando gente para a gente ver. Só que salienta: “Na contemporaneidade, este homem incorporou a tecnologia no seu dia-à-dia”. O que ele quer dizer com isso? Ele explica: O personagem do teatro de hoje pode ser um transplantado e a história pode ser ele amar a pessoa que quem doou o coração amava. Uma nova situação provocada pela tecnologia. E agora vem uma parte que me traz certo deleite. A ciência ficou sendo vista como ameaça. Assim, como marcianos atacariam a Terra com suas novas tecnologias. Nosso imaginário ficou impregnado de temores, mas não é a tecnologia que traz perigos. Estes estão com o homem. Questões relacionadas ao caráter, a moral, a ética do ser humano. Fora do Brasil, a atitude é  ainda mais reacionária, sendo proibidas as pesquisas com células tronco. Não precisamos ter medo da ciência, mas do próprio homem. A arte não está ameaçada. Ela é antropofágica. É capaz de digerir as tecnologias. A ciência é tão revolucionária quanto à arte. A arte é preocupada com a criação da subjetividade. “Nós artistas não temos medo do formato livro desaparecer. Devemos ter medo é de nós mesmos.” Terminado o painel, a parte das perguntas também trouxe algumas informações interessantes, mas, vou pular para que não tenha que me estender muito mais porque o melhor ainda está por vir. Registro apenas algumas frases:
- A tecnologia ajuda a elaborar o texto quanto a sua mecânica, mas, não interfere na criatividade.
- Há mais caminhos para as manifestações artísiticas
- O livro se repotencializa.
- Temos que manter uma vigilância crítica para o tipo de discurso que tem um objetivo apenas comercial do tipo: o futuro é hoje.
- A morte tem a sua função. Prorrogar a existência de alguém artificialmente não se justifica. Há um ponto final.
Bom, mas, me sinto obrigada a voltar para a fala de Alcione Araújo que foi solicitado a responder o que ele achava sobre espetáculos teatrais multimídias e se ele considerava que a tecnologia podia substitui o ator. Sobre isso, Alcione diz que a ideia de teatralidade é mais complexa. O ator nunca é o outro, nem apenas ele. Esta é a grandeza do ator. Comenta a torcida curiosa e perversa, oculta e incofessa que quer que o ator erre. Segundo ele, o risco é parte incorporada do espetáculo. Um ator pode morrer em cena.

Frustração dois – Terminado o painel, a idéia permanecer por lá até a conferência das 20h o que, certamente, parecia ser muito tempo. Descubro, porém, que haverá o Café literário e me dirijo para o Centro de Convivência. Chego em um mini-shopping, com farmácia, lojas de sapatos, acessórios, biquinis e uma espécie de praça de alimentação. Em uma das paredes um imenso logo, escrito RU. Dá para acreditar? Não demorou muito para o encontro começar. Tezza seria o entrevistado por Loyola e Fischer. Prometia. Mas houve um pequeno problema. Nem todas as pessoas estavam ali para ouvir outros e muito menos interessados em fazer silêncio. A acústica do espaço não é boa e assim, era um zumzumzum irritante. Desisti.
Fruição dois - Volto para a área do circo. Paso pelo espaço da imprensa e vejo uns braços gesticulando do outro lado dos vidros. Reconheço Ricardo (Silvestrin) dando uma entrevista pra a Rádio UPF. Desculpe, eu sei, estou falando de novo nele, mas fazer o quê? É a única pessoa que (re)conheço neste universo tão incrível de pessoas e, com isso, percebo que só agora tenho, realmente, uma turma. São meus colegas de mestrado. Na escola, meu boletim vivia com recomendações do tipo: “precisa se relacionar melhor com os colegas”. Na universidade, me dava bem com todos. Fui até representante do Centro Acadêmico, mas não fiz, realmente, amigos. Foi preciso eu escolher a arte para encontrar meus iguais. Iguais? Nada. Somos todos tão absolutamente diferentes e, no entanto, temos tanto em comum e recorro a um texto que me fez pensar direto neles: “Meus objetivos são todos subjetivos”. Preciso dizer de quem?  

Fruição três – Vou para o circo. Está quase na hora do show. Não tinha nenhuma expectativa. Para mim, era apenas uma forma de passar o tempo. No palco o grupo Repercussão. Começam com Trenzinho caipira de Vila Lobos. Não sei por que, mas esta música sempre mexeu comigo. Passam para Asa branca, o frevo Vassourinhas e Brasileirinho. Um dos músicos no palco apresenta o grupo. “Ele é professor aqui da UFP”, me diz a menina que conheci aqui no primeiro dia. Logo vi. A cada música ele acrescentava informações sobre os compositores, os instrumentos, etc. Sandro Cartier explica que se trata de um projeto chamado No baú a música do Brasil. Minha atenção se volta para a moça que traduz tudo que ouvimos em Libras. Está lá desde o primeiro dia, mas fico imaginando como será explicar aquelas palavras típicas da linguagem popular deste país tão grande. Sou surpreendida pela questão sobre qual seria o único ritmo gaúcho por excelência. Quem arrisca a responder, erra feio. A resposta vem do professor: O bugil! Nunca pensei... “Este é um projeto educacional  que queremos levar para as escolas falando sobre compositores, intérpretes, gêneros, resgatando canções”.
Fruição 4 - Antes da conferência de Arriaga, sobem ao palco 23 integrantes de Alta Floresta, Mato Grosso que vieram para a jornada. Enquanto isso, contava para a minha nova amiga uma parte da minha vida e lembrava de uma viagem que havia feito na época de faculdade para Salvador para participar de um encontro de Comunicação. “54 horas de viagem de ônibus”, digo a ela. Quando a coordenadora do evento pergunta ao grupo quantas horas elas levaram para chegar ali, a resposta foi: 54 horas. Até parece história de mentiroso! Uma das professoras fala pelas demais. Diz que esteve no evento em 2007 e que prometeu que sozinha não voltava mais, queria que outras pessoas também tivessem a oportunidade de participar (entendo perfeitamente este sentimento).

Deleite único
Guilherme Arriaga é chamado ao palco. Tenho um sério problema para associar o nome as pessoas e até ali não tinha me dado conta de que estava diante do roteirista de 21 gramas e Babel, para citar só estes dois. Fala do seu orgulho em estar ali, do quanto é importante reunir mais de cinco mil pessoas para falar de literatura. Tem um jeito simpático e expressivo de se comunicar e vai conquistando rapidamente o público, eu, inclusive. Para isso, comenta suas experiências no Brasil. Um contato com Octávio Araújo que tinha um projeto de organização de bibliotecas nas favelas do Rio de Janeiro, com a intenção de alterar o quadro de violência, usando a literatura. Outra experiência era relacionada a idéia de levar livros às prisões, pois lendo os presidiários eram livres. Comenta o privilégio que é estar em uma universidade e poder resgatar a leitura, o que para ele permite encontrar a nós mesmos.
Pede que lhe alcancem um livro. Diz que é um objeto perfeito. Guarda no bolso. Coloca embaixo do braço. Diz que ao fazer isso mostramos que o livro é NOSSO. Dá para marcar, dobrar e...atirar (lança o livro de em direção ao público). São objetos resistentes, observa.
“A arte coloca luz em lugares onde não imaginávamos que havia algo. Faz a gente pensar em lugares que não teríamos visto. O ato de ler pode ser subversivo.” Quanto a preocupação dos jovens não lerem mais, ele afirma: “Se assim fosse, não haveria um Harry Potter”.Arriaga comenta que as pessoas que estão no evento escrevem todos os dias e que os jovens não vão deixar de ler.Para ele, um escritor pode trabalhar em muitos meios e revela que se ele não escreve as histórias trancam na sua garganta. Defende que um roteiro (nem gosta desta palavra) já é literatura, já é uma obra. Tudo que é dito pelos atores está escrito e conta de uma situação em que os atores queriam improvisar e outro mais experiente disse: “por que tu achas que vais conseguir em cinco minutos um texto que foi escrito em três anos?”
Suas colocações ficavam cada vez mais interessantes e a expectativa em relação ao que ainda iria ser dito ia aumentando, porém, ele parou e disse que queria as perguntas. Surpresa na platéia. Jà? Como estas não vieram ele seguiu dizendo existe uma palavra em linguagem patagônica que significa um homem e uma mulher sentados um em frente ao outro e não se atrevendo a dizer o que sentem. Fala que as peles que acariciamos ficam em nossos dedos, que o momento se perde. “O ato de escrever é finito, mas o ato de ler é INFINITO. Fala que em uma ocasião uma pessoa disse para ele: li seu livro em três horas, o que lhe gerou uma certa tristeza. Cinco anos para escrever e apenas três horas de leitura? Um amigo dele, no entanto, lhe disse: “Se tu juntares três horas de um leitor, com três horas de outro leitor e daí por diante, tu vais completar os cinco anos.”
Arriaga diz que na escrita não há resultado, não há progresso. Exemplifica dizendo que se assim fosse o último livro de Garcia Marques seria melhor do que os anteriores. Conta que o escritor convive com o medo permanente de que não tenha mais o que escrever. É um terror permanente. E insiste: alguma pergunta? Ah, se eu soubesse que ele estava tão desejoso de questões...
O diretor, autor pede para todos olharem suas mãos. O espanhol atrapalha e grande parte da platéia se dá as mãos. Eu, por exemplo. Ele entende o engano. Afirma: “Haverá um momento em que estas mãos serão mãos de cadáver. Por isso, devemos acariciar tudo que queremos, golpear tudo, escrito tudo. Diz que mantém caveiras ao lado do seu computador de diversos materiais para lembrar que ele tem que construir uma obra.
“O que passa se não lemos Shakespeare?” Nada. Cita vários outros grandes autores e a resposta é sempre a mesma: nada. O problema, diz ele, é que quando os lemos se passa tudo.
Lendo sabemos que outros seres humanos têm momentos semelhantes aos nossos. Todos os seres humanos necessitam compreender as experiências dos outros.
Questionado sobre as adaptações de livros para o cinema, ele diz que estas rompem com o que o leitor imaginou quando leu a obra e isso o desaponta. Diz que passou por uma experiência assim com um livro seu. Considera que, por isso, os piores livros permitem as melhores adaptações. Diz que o livro As pontes de Madison não presta, mas, que o filme é grandioso.
Sim. As perguntas chegaram. Querem saber porque a morte se faz tão presente na sua obra. Pensei que isso já estava respondido. Mas Arriaga vai além: todos vamos morrer. Falar da morte não é falar da morte é saber que há um fim, que precisamos viver com mais intensidade.
Mostra a sua careca dizendo que esta foi a língua da morte passando sobre a sua cabeça para dizer que ela virá. Diz que devemos ser orgulhosos das nossas cicatrizes. Busca empatia no público praticamente feminino dizendo que a celulite também é apenas uma destas cicatrizes da vida.
Voltando a questão do valor literário do roteiro, ele diz que quando os arquitetos fazem uma planta, os músicos, uma partitura já é uma obra, por que com o cinema seria diferente? O texto de Shakespeare já não é uma obra antes de ser encenado?
Por que se interessou pela literatura? “Tinha uma paixão enlouquecida pelas mulheres”. Precisava entender como resolver situações amorosas, diz ele.Conta que aos 13 anos montou Romeu e Julieta na escola e que este  personagem o ensinou a como tratar as mulheres. “A partir daí comecei a entender que a literatura era imprescindível”.  Acredita que esta possa contestar e transformar a realidade. Cita Paulo Freire.
Sobre como pensou em 21 gramas, ele diz que o filme se baseia em uma experiência pessoal. Uma membrana do seu próprio coração estava inflamada e, talvez, ele pudesse precisar de um transplante. Só imaginar viver com o órgão de outra pessoa já provocava muitos questionamentos. Depois, viu um atropelamento onde uma pessoa morreu. Viu quando o policial pegou o documento da vítima e tirou de dentro uma foto dele com uma mulher e uma menina e pensou que naquele momento aquelas mulheres teriam que viver sem aquele homem, sem aquele marido, sem aquele pai. (Neste momento, já sinto arrepios na minha própria pele e fico feliz de que apenas palavras possam ter este efeito). Estas coisas, ajudaram a criar 21 gramas. Quanto a sua estrutura surgiu da observação de que o passado nunca vêm de forma ordenada.
E o cinema produzido com elenco virtual? “Não gostaria de atores virtuais, assim como não acho interessante sexo virtual”.
 “Estamos cada vez mais vinculados a seres não reais ou se são reais não são presença de carne e osso. A função da arte é devolver a cada um dos sujeitos seu valor como pessoa”.
Arriaga conclui dizendo: “Todo o escritor precisa de ajuda. Não quero que os meus livros morram. Por favor, me ajudem a completar os cinco anos que levei para escrever.”
Impactante. Como já disse antes, fico extremamente satisfeita de que as palavras, as quais sempre me dediquei, tem o poder de mexer tanto com a gente. Provocar novos sentimentos e, por que não, atitudes. Arriaga me deu a sacudida interna de que estava precisando. Aliás, acho que fez isso com toda a sua platéia. Minha nova amiga diz algo que define a impressão que tive: “ele parece uma pessoa amorosa”. Saimos as duas comentando nossas vidas e incertezas. Mais uma vez, ela me dá uma carona em seu fusquinha, me deixando na porta da frente. Ainda bem que sei aproveitar estes momentos com a intensidade que eles merecem. Serei mais feliz quando conseguir parar de temer a reação alheia e ir naturalmente ao encontro daqueles que me são verdadeiramente importantes sem medos, quando não for mais “desconcertante rever o grande amor”.
(continua...)

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