Monday, August 16, 2010

Reflexão pós-Lehmann: sou pós-dramática, dramática, cômica e, talvez, até épica!

Juntando tudo que Hans Lehmann disse, mais as perguntas durante o Seminário Teatro contemporâneo: para além do drama deu um total de 16 páginas de conteúdo. Andei repassando parte deste aos amigos e colegas. Mas fiquei feliz em ver que alguns ainda queriam o que eles chamam de meus “relatos”. Não o texto pura e simples transcrito, mas as minhas impressões, o meu "trato jornalístico". E esta alegria não veio só por uma questão de vaidade. Também por me mostrar que meu gosto pela escrita e pelas artes tem valor para alguns. Dito isso, decidi, então, retirar de tudo que este alemão comentou o que eu considerei mais importante e dar os meus pitacos. Mas, ainda assim, vou ter que dividir em partes. Então, lá vai:

Primeiro quero dizer que gostei muito do formato que o evento acabou apresentando. Em uma articulação do Programa de pós-graduação em artes cênicas que mal acabou de concluir, mais a Secretaria, entre outros, surgiu esta ideia de misturar os “acadêmicos” e os “artistas” para esta ocasião. Para mim, isso deveria acontecer sempre. Claro que sou suspeita. Afinal, estou mais encaixada nos primeiros dos que nos últimos, mas todos sabem da minha paixão por estes. Minha admiração profunda por todos aqueles que produzem e pensam o teatro. Espero que este tenha sido o primeiro de muitos encontros deste tipo, pois assim sendo estes, certamente trarão novo significado aos eventos culturais da cidade.

Depois, quero registrar que não foi com total simpatia que ouvi as ideias do Lehmann em sala de aula. Não porque não fossem interessantes, mas porque me pareciam que vinham com o peso da “voz da verdade absoluta” e isso sempre me causa algum desconforto. Porém, ao lê-lo ia reconhecendo que seria muita burrice não dar ouvidos a este pensador tão reconhecido em toda parte. Mais burrice ainda se não fosse lá ouvi-lo ao vivo e a cores e, realmente, já adianto, não houve arrependimentos. Até porque, ele próprio, não se coloca como alguém que detém a sabedoria. Em certo momento, após algumas perguntas que exigiam um exercício de futurologia, ele disse: “não sou a pitonisa do teatro”. Afirmou, também, que as pessoas costumavam fazer reflexões sobre o que ele disse que vão muito mais além do que ele próprio havia pensado. Ou seja, uma postura modesta diante da reação das pessoas à sua obra. Fez até piadinhas. Perguntou a plateia se esta conhecia uma zombaria que se fazia na Alemanha. Disse que a resposta sobre a pergunta: “qual o teatro mais bem sucedido do século XX?”, a o do século XIX! Nem Barack Obama escapou. Lehmann comentou que mesmo que ele seja bem-intencionado, só pode mudar poucas coisas na política americana.

Claro que ele falou das misturas das artes cênicas com as outras artes, com o uso de recursos tecnológicos e todas aquelas outras coisas que quase todos já sabemos. Citou bastante Heiner Muller (o que sempre me faz pensar em Sergio Silva, pois foi quem me apresentou este autor) e a estrutura pós-dramática de seus textos. Foi dizendo frases muito fortes inseridas dentro de um contexto maior. Ou seja, se a gente não se toca, passam despercebidas. Como esta, por exemplo: "A vida é cada vez mais o contingente fragmentário e não estilo dramático, mas em episódios, fases, trechos, sessões. Uma forma de vida dramática não é mais concebível.”

Lehmann destaca Deleuze (ai, esta criatura me persegue!) para falar que a filosofia das últimas décadas desconstruiu ideias anteriores. Porém, ele sabe que não é assim tão simples, pois, segundo ele, existe em nós um desejo do drama. “Nós adoramos o drama”, diz. E isso fica bem claro no cinema. Neste momento cita um livro chamado “Aristoteles em Hollywood" (vai dizer que não deu vontade de ler?) no qual fica claro que as regras da Poética são úteis para filmes que tenham ressonância com o público. E, logo em seguida, parte para um momento delicado ao falar em entretenimento. Diz que, para ele, a arte é uma prática essencialmente crítica, que ele não despreza o entretenimento, mas diz que, como teórico, não lhe interessa. Bem, devo dizer que suas afirmações me entretêm.

Logo depois, chega o momento em que algo que ele diz abre um verdadeiro clarão na minha cabeça. Ele explica que, na verdade, diferente do que se pensa, o teatro, historicamente falando, tem muito mais tempo de não-dramático do que dramático, que em países orientais, por exemplo, sempre existiram estas outras formas de fazer arte que não mostram uma narrativa, ou seja, o ciclo da vida do teatro dramático é curto, pois o teatro da antiguidade está muito distante do drama que conhecemos desde o Renascimento. Ele disse que não era um exagero afirmar que o teatro da Antiguidade era pré-dramático.

Outro ponto nevrálgico que ele acabou abordando foi sobre a presença do ator no teatro pós-dramático. Mas até nisso ele foi tranquilizador. Lehmann comentou que sobre a pergunta do que acontece com o ator neste momento, ele responderia: isso depende. Segundo ele, não existe o teatro pós-dramático no singular. Ele diz que é uma tentação muito grande utilizar conceitos genéricos como se eles definissem as coisas e as colocassem em uma caixinha fechada. Ah, que alívio... Ele também não gosta de verdades supremas.

Fala de algo que para mim já está muito claro há algum tempo, desde a mediação da Bienal em 2005, pelo menos. Ou seja, quando surge uma proposta nova de arte, é preciso perguntar sobre a essência da arte anterior. Ele diz que um bom exemplo é a fotografia, que a pintura precisou se perguntar o que ela é, que a fotografia não é. E eu não estava errada em pensar mesmo na Bienal, pois teve uma artista que trouxe uma obra que era pintura da natureza, exatamente como os objetos reais, pássaros e frutas e todo mundo que visitava a obra dela ficava de queixo caído com a qualidade do que ela pintava. A técnica era tão incrivelmente perfeita que impressionava, mesmo agora com o fato de que qualquer um pode sair fotografando por aí. Ou seja, é preciso relativizar estas afirmações categóricas. Isso, não foi o Lehmann que disse. Isso digo eu.

Lehmann chama a atenção para outra coisa que também sabemos de cor e salteado, mas que, às vezes, parece que esquecemos: “o teatro pode implicar o espectador de uma forma diferente do que qualquer filme pode fazer. Pode enfatizar a presença de atores e espectadores de forma particular, envolver habilidades artísticas, co-presença. Enquanto “plateia” sabemos que podemos interferir no que acontece a qualquer momento. Ele enfatiza que diante da tv não estamos envolvidos na produção das imagens que nos chegam. A nossa responsabilidade diante destas não existe. Já no teatro, isso é diferente.

Ele salienta que para Guy Debord a sociedade tem a tendência se mostrar como espectador, o cidadão como recebedor passivo de processos que lhe são ensinados. O teatro muda esta mera recepção passiva. “Consiste em romper com esta concepção e isso pode acontecer de formas muito diferentes”.

Lehmann defende que não faz sentido ficar perguntando se as novas formas de representação e encenação ainda são teatro ou não. “O teatro assume características de performance e a performance se teatraliza”.

Eu não disse que ele fazia afirmações poderosas, jogadas no meio do discurso? Esta foi uma delas: “O objetivo da arte é achar o caminho para se habitar um universo”. E ele tirou até aplausos no meio do seu discurso quando disse que, em sua opinião, não existia só prazer e alegria na arte, que o teatro não deveria ser apenas uma festa, mas uma festa que lembre as pessoas que não podem participar dela. “Do contrário, ele não é nada”.

Lehmann comentou que fez referência a Aristóteles, pois, segundo ele, o nosso pensamento ainda está impregnado por este. Diz que a famosa catarse para o pensador grego não está associada ao teatro, como creem muitas pessoas que falam que este conceito. Para Aristóteles, já começa da leitura da tragédia. Mais chocante é ele dizer que para Aristóteles o teatro era para as pessoas mais burras (conheço o tradutor, caso contrário desconfiaria desta palavra) que não conseguem pensar por conta própria. Lehmann explica que esta predominância do lógico define a nossa compreensão do teatro hoje e que temos que nos voltar contra isso de forma deliberada. Neste momento penso que isso faz muito sentido e que seria bom se alguns críticos de teatro lembrassem disso também. Aliás, Lehmann também faz referência a estes, dizendo que muitos ainda falam a mesma coisa que Platão dizia ao criticar os seres humanos por se entregarem ao teatro ao invés de pensar rigorosamente utilizando a lógica.

Comenta um pensamento de Baudelaire, desses que eu adoro, pois deixa claro o quanto podemos estar enganados. Diz que este, quando a fotografia surgiu, afirmou que seria o fim da arte. Lehmann afirma que esta reação de medo, da superficialidade do teatro, sempre existiu e continua existindo hoje em dia.

Ele volta a Aristóteles para explicar que para este a arte sempre precisa ter uma forma de ordem. A definição do belo, em Aristóteles, fala de uma totalidade, unidade, coerência, do contrário não é belo. Por isso, ele diz que esta totalidade precisa existir. Para que possamos entender bem, deve ser de fácil apreensão, com um único olhar, do contrário, ficamos confusos e a confusão não pode ser bela. Em uma ideia clássica da obra de arte, a arte precisa ser como o organismo animal. Havia uma comparação com a totalidade orgânica. Só a modernidade rompeu com isso. Antes, dizia-se que o belo deveria ser como um animal, mas o animal deveria ter o tamanho certo. Não poderia ser pequeno demais, nem grande demais como um animal de dois quilômetros tipo Jurassic Park porque não conseguimos vê-lo de uma vez. Já teremos esquecido o começo quando chegar ao fim. O belo é organizado como a compreensão lógica.

Lehmann comenta que Aristóteles diz algo que ele sempre gostou de incluir em suas aulas, e que seus alunos pensam que é besta: Totalidade é uma coisa que tem início, meio e fim. Assim deve ser o teatro drama. Esta ideia de Aristóteles, para Lehmann, é uma tese muito perspicaz, a produção de uma moldura dentro da qual incluímos e tiramos coisas. Conclui dizendo: “Acho que não preciso explicar que a arte moderna invalidou esta ideia de começo, meio e fim”. Traz como exemplo o cinema de Godard que fazia filmes nos quais os espectadores tinham dificuldade de perceber o nexo. Ao ser atacado por um crítico que disse que um filme precisava ter início meio e fim, respondeu que este tinha razão, mas que isso não necessariamente nesta sequência.

Lehmann retoma a ideia de que temos uma predileção pelo drama e argumenta que foi Ricoeur quem explicou porque esta ideia de Aristoteles acabou tendo tanto poder. Segundo ele, era um argumento que estava relacionado a uma teologia do tempo. A uma ideia de criação, desenvolvimento e apocalipse. Quem diria...Assim, os argumento estético e teológico se alimentaram mutuamente.

Ao encerrar, ele diz que o nosso aparelho de percepção consegue conviver com muita anarquia, labirintos, montagem, colagem sem que basicamente nossa pulsão para o drama desapareça. Este sempre encontra uma possibilidade de satisfazer o instinto da dramatização porque quer manter esta forma dramática na qual não acreditamos mais.“Sempre estivemos além do drama e este parece ser o caminho”.

Finalizando esta primeira parte do meu relato, gostaria de dizer que o pós-dramático pode até não ser a explicação para tudo (e nem poderia), mas bem que facilita a entendermos a arte nos dias de hoje. Diria até que dá uma ajudinha até na compreensão de nós mesmos. Não é que eu tenha deixado de procurar "inícios, meios e fins", mas não há como negar que a vida é desordenada e sofremos menos se conseguimos encontrar este "guarda-chuva", como disse Lehmann, que congrega tudo. Afinal, sabemos que muitos os invernos durante a vida.

3 comments:

  1. Teu texto é ótimo, mas continuo olhando muito desconfiado para esse teatro pós-dramático. Não que eu não veja valor em algumas manifestações que se aproximam dessa proposta, mas tenho medo da desculpa de que no teatro "tudo pode". Soa careta, eu sei. Mas esse homem pós-moderno, com sua sociedade/vida/relacionamentos/arte (?) fragmentada me assusta. Baumam me mostrou, com o seu pessimismo, que o futuro tende a não ser um bom lugar para se viver/trabalhar/relacionar. Acredito numa arte que possa, sim, também divertir, além de educar e criticar. Gosto mais da pintura que da fotografia. Do começo, meio e fim do que as histórias (?) sem pé nem cabeça. Prefiro os filmes do Copolla do que do Godard.
    Ah, eu sou dramático!
    Ah, eu sou dramático!
    Sim, sou dramático, mas sou feliz...
    Beijo, Helena.
    Adoro o que tu escreves!

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  2. Anonymous7:52 AM

    O que acontece sobre o palco ou espaço armado para tal é realidade. para quem assiste é representação de uma realidade. São duas leituras ao mesmo tempo. No mesmo tempo em que se recosntroi oq ue o autor escreveu.
    nem sei há necessidade de plateia.

    COELHO DE MORAES
    www.jamendo.com/br/artis/coelho.de.moraes

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  3. Tá... vou ler e reler.
    Ótimo texto.
    Fiquei refletindo, muito obrigada por este momento.
    Não gosto só de entretenimento. Nem só de inícios meios e fins. Nem só de pintura, nem só de fotografia, aproveitando o exemplo do Gilberto.
    Gosto de ser tocada. Seja por um drama ou por pura identificação do caótico em que vivemos.
    Mas acima de tudo, acredito na comunicação da arte.
    E não precisa ser "belo" (e entro nessa discussão do que é belo - lembro das aulas da minha mãe)para me comunicar.
    Tem que ser bom. Mas o que é ser bom?
    Hm... mais questionamentos sempre.
    O que talvez mais me incomoda é uma tendência de pensar que uma linguagem vem para substituir outra. Um desrespeito mútuo. Me soa um pouco, mal comparando, com o desrespeito aos idosos.
    Enfim, vou aguardar novos relatos.
    Aprendi mais e me encontrei em várias coisas...
    Quem diria, eu que em 99 me formei com Heiner Müller na veia... Sendo xingada por alguns acadêmicos por não ter feito o mais "óbvio" se é que isto é possível em H.M.
    hehehe... me achei super pós-dramática agora...

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