Sonhei com coisas na vida que não se realizaram, mas, em compensação, vivencio outras que jamais poderia imaginar. Quando assistia aos muitos eventos dos quais já participei como ouvinte, não pensava que, um dia, seria amiga de palestrantes. Porém, nesta quinta-feira, fui ver cinco, dos quais três fazem parte, hoje, das minhas relações. Então, chega a ser engraçado ver eles lá, distanciados pelo formato da apresentação, com cadeiras no foco, copos d’água ao lado, ou seja, no palco. Isso sem falar das pessoas envolvidas com a organização que também conheço e que me recebem calorosamente, como Laura Backes.
Sessão da classe recebe os convidados com vinho e café, o que em noites mais frias já é um aconchego. A abertura ficou por conta da coordenadora Nádia Maria Weber Santos. Doutora em História da UFRGS. Bem, quem olhar o meu currículo vai ver que já fui aluna deste curso. Sempre gostei muito de história. Tendo como professor no Instituto Educacional João XXIII Voltaire Schilling acho que não poderia ser diferente. Como jornalista, achava que seria muito bom associar as duas coisas. Mas acabei desistindo ao perceber que teria que passar primeiro por todas as cadeiras da pré-história e da história da antiguidade até chegar ao contemporâneo. Ficava muito puxado ir ao campus naquela época. Porém, minha paixão nunca arrefeceu.
A primeira a falar foi Alice Dubina Trusz, também doutora em história pela UFRGS. No tema dela mais um assunto que sempre me atraiu: cinema. Como ela mesma conta, a fonte de informações foi os jornais. Ou seja, ela mesclou em sua pesquisa teatro, cinema, história e jornalismo. Como eu não iria gostar? Despretensiosa já ganhou minha simpatia quando riu de si mesma por estar ali já que não trabalhava com memória, nem com teatro, nem com a efemeridade. Sua pesquisa foi sobre cinema como espetáculo entre 1896 e 1908. Ela teve que ir aos jornais para resgatar esta história de uma época em que o cinema era novidade e que precisava acontecer junto com outras atividades como o circo, o teatro, as feiras. E por não haver como registrar isso por imagens, os jornalistas tinham necessidade de descrever detalhadamente o que acontecia. O cinema aparecia junto com gêneros espetaculares como as touradas. Touradas? Nem sabia que tinha isso por aqui...Em seguida, ela explicava que não era para imaginar um cinema como o de hoje. Ela estava falando de um projetor chamado Lanterna Mágica que mostrava imagens fixas. Foram 30 anos destas experiências. “Uma espécie de Power point dos dias de hoje”, disse ela, arrancando risadas da plateia. Cheia, por sinal. Acho que ela conseguiu informações interessantes justamente por ter se colocado no lugar do espectador, como ela disse. Ela contou que, mais tarde, o cinema se sedentariza. Isso quer dizer: vai ocupar os espaços teatrais, acontecendo em um lugar físico confortável. E tinha que ser já que isso significa duas horas com intervalos. Tinha dia para ir aos cinemas. Foi em 1908 que surgiram as salas pequenas legitimadas como espaço de cinema, havendo uma regularização e chegando ao que conhecemos hoje.
Depois dessa aula entusiasmada de Alice Trusz sobre cinema sem que ela tivesse necessidade de consultar seus escritos, foi a vez de Betha Medeiros. Ela começou fazendo uma reflexão interessante sobre a questão do tempo, pois, até então, achava que sua pesquisa sobre o espetáculo Reis Vagabundos encenado há 28 anos era antiga, mas vendo aquela do início do século, era obrigada a mudar a sua percepção. Betha não parte da suposição que todos conhecem a história da mitologia grega de Penélope que prometeu se casar de novo quando terminasse uma peça em seu tear e a explica para falar da metáfora entre o nome do grupo e a situação de sua pesquisa.Gosto da franqueza dela que conta sobre os seus devaneios e seus insights em lugares insólitos. Suas relações levam a considerações sobre o teatro falado que leva ao corpo do ator e ao corpo criador do século XXI. O discurso de Betha é recheado de onomatopéias (vruum, diz ela). Ela também chega aos jornais quando conta que pouco era guardado do material sobre os espetáculos, que as fotos iam parar nos setores de divulgação da imprensa. Bem, a prova disso é o quadro que tenho na minha parede com fotos de filmes hollyoodianos. E ela também não teve como escapar de outra prática da comunicação: as entrevistas. Segundo ela, estas foram gerando uma polifonia, um imenso quebra-cabeça. Fiapo, o cenógrafo do espetáculo, lembrou que não conhecia a palavra clown e que eles faziam um trabalho de improvisação como mendigos, catadores de lixo nas ruas, mas que, um dia, Maria Helena Lopes chegou nos ensaios com os “narizes” e tudo mudou, fez-se a mágica. Betha não esconde a admiração que tem pela diretora (que estava presente aquela noite na Álvaro Moreira) e que se revela ainda mais neste momento. Ela reforça que se tratava de uma peça sem texto e que, no entanto, provocou fortes e inesquecíveis impressões. Mesmo em sua pesquisa acadêmica Betha se deu a liberdade de criar seus próprios títulos e fala de suas conclusões, quer dizer, de seus “alinhavos”. Ela faz uma rápida associação da pesquisa anterior e comenta que vai mostrar a SUA lanterna mágica. Projeta fotos do espetáculo e a música enche a sala mostrando a força daqueles registros resgatados pelo seu trabalho apaixonado, provando que estas duas coisas podem, sim, ser misturadas.
A próxima a falar é também minha colega de mestrado, Cibele Sastre. No Facebook Laura havia dito que ela explicaria Laban, ao que eu comentei que tinha medo. Ela reaparece com o seu ótimo título: Nada é sempre a mesma coisa. Sua saia longa e seu corpo longilíneo de bailarina me lembram Julie Andrews como Mary Poppins.Traz uma velha brincadeira nossa de dizer que “cada um no seu icosaedro”, uma mistura do popular com o acadêmico que nos ajudava a suavizar a tensão da época. Coisa que me parece muito bem resolvida agora em seu momento de doutorado quando ela diz que foi buscar “alguns amiguinhos” ao se referir a Foucault. E Cibele foi mesmo além. Ela já não fala só da notação de movimento de Laban, mas de sua apropriação. Comenta o quanto o coreógrafo ajudou no registro e difusão da coreografia e eu lembro a primeira vez que vi os “desenhos” do trabalho dela e o quanto tudo aquilo era, absolutamente, estranho para mim. Hoje, graças a ela, já sei do que ela fala e até me surpreendo pensando porque achei tão complicado compreender que se existe partituras para a música, nada mais natural do que haver também para o corpo. Quer dizer... isso depois de Laban ter feito o que fez e Cibele falar disso sempre em sala de aula, é claro! É isso: o coreógrafo criou estes códigos para compartilhar os movimentos do corpo. Mas Cibele não se contentou com isso. Em sua pesquisa, usou este código, que até então era uma tarefa de movimento, como motor de um processo, como um dispositivo, como ela mesmo disse. Seu Power point com as imagens não funcionou. Ainda bem. Mal sabe ela o quanto foi prazeroso vê-la levantar e usar o próprio corpo para explicar do que ela estava falando. Se sua fala ainda não tinha convencido alguém, não tenho dúvida de que aqueles movimentos perfeitos, aquela consciência corporal exata e ao mesmo tempo flexível, fizeram isso. Mesmo sendo fã das novas tecnologias, não há nada como alguém “ao vivo e a cores”.
A próxima palestrante, doutora em história, Maria Luiza Martini teve dificuldade de começar a sua fala tamanha era a sua emoção. A conversa dos demais havia provocado nela muitas lembranças e ela se esforçou para conter as lágrimas e a voz saiu embargada. Ela começa falando da importância da história cultural ter dado espaço para esta mistura com a arte. Recorda sua professora Sandra Pesavento e sua batalha para este reconhecimento. Ela diz que, enquanto a história está sempre se esforçando para expressar como foi, a memória é fazer aparecer o efêmero da ficção. Sua fala é empolgante, cheia de energia e isso se revela em frases como “eu me agarrei neste pedaço”, dita sobre a questão da evocação da memória, da qual fala Izquierdo. Ela fala de algo que conheço muito bem, mas que jamais tinha ouvido ser chamado assim: as categorias sintáticas, ou seja, quem, como, quando, onde. Aos poucos, ela vai falando das suas lembranças sobre os espetáculos e conta que, em um, ela sabia onde e como estavam quase todos. “Faltava apenas a cabeça do Damasceno”, disse ela. Até que alguém disse para ela que, durante o espetáculo, ele usava uma máscara africana. Ela reforça a ideia de que para que possamos lembrar é preciso compartilhar o passado, pois a memória não vem completa. São aparições e no movimento de aproximação, elas apresentam falhas. Segundo ela, é preciso aceitar “o caráter lacunar e não ter medo de ter estas visões”. Maria Luiza segue recordando e fazendo análises sobre estes registros. Comenta também que ela tinha uma forte lembrança da presença de um carrinho de bebê, mas que, depois, percebeu que se tratava apenas de um pequeno gesto que era feito com as mãos, insinuando alguém pegando o carrinho. Lembrou também Susana Saldanha que vendia um fogão imaginário mas que a partir de sua relação com o público ia se “materializando”. Ela disse que Susana se ofendeu por ela não lembrar do fogão, mas que também não lembrava onde ela estava no palco até que alguém disse que era em uma fila, mas que para saber mais detalhes precisaria encontrar algum outro ator que também estivesse com ela. Ela enfatiza este caráter da troca e fala em “historiografar as emoções na arte e na memória, partindo do contexto evocativo. Fala em fazer uma “rede Scherazade”[1] e, diferente de Betha, não rememora do que se trata, o que, naquele momento, me deixa meio perdida, enquanto a plateia ri.
Meu amigo Newton Pinto da Silva ficou por último. Ele faz rapidamente uma recapitulação da sua ligação com o teatro e comenta como chegou ao Acervo de 24 programas da TVE que apresentavam espetáculos teatrais e entrevistas com os atores de 1987-1990. Ele intercala a sua fala com pequenos trechos destes. Assim, vemos Tangos e Tragédias, A mãe da miss e o pai do Punk, Ostal, entre outros, incluindo A verdadeira história de Édipo Rei. Este espetáculo provoca sempre a minha memória, pois assisti em meu primeiro emprego quando trabalhei de assessora de imprensa na SAT em Tramandaí. Devo ter no meu arquivo um jornal do clube com uma matéria sobre esta apresentação. Para mim, isso é mais uma prova de como fatos e pessoas estão mais entrelaçados do que podemos imaginar. Bem, mas ele fez recortes dos sete espetáculos pesquisados. Niltinho, como o chamam as pessoas ligadas à cultura na cidade, não apenas resgatou este material, mas partiu para as relações com a historiografia, usando para isso, como ele sempre gosta de frisar, os conceitos de Michel de Certeau, entre outros importantes autores. Fez um trabalho profundo selecionando, editando, reagrupando as imagens. Ele revela parte do processo para chegar aqui, partindo da seguinte pergunta: “como deixar falar estes documentos?”. A partir disso, não sem muitas dúvidas a serem solucionadas, ele criou nove categorias e elaborou um painel da cena teatral do período, onde aparece a força da estética experimental, a variedade de repertório e o hibridismo de gêneros. Para mim, foi muito bom ver que ele já resolveu internamente as dúvidas que tinha e fala agora com orgulho dos resultados. É fácil perceber que ele já se apropriou dos pensamentos de todos aqueles que antes eram ilustres desconhecidos. Tanto é assim que se ao ser convidado ele se questiona sobre o que irá falar, depois quer até passar do tempo e tira risos da plateia quando diz que fez duas páginas de justificativa para o uso de imagens que não eram do programa.
Muitas vezes, quando termino meus textos, penso que fiquei escrevendo eu, eu, eu, mas, acontece que, apesar de ter gente que diz que eu escrevo críticas, crônicas, eu digo que são relatos. Para mim, é como o que eu escrevia nos meus diários aos dez anos só que agora não fica mais nos meus cadernos dentro do armário. Vão para os blogs. Aliás, a tecnologia é outra paixão minha e não é para menos, afinal, quem quiser saber muito mais, sobre todos estes temas basta acessar: link http://maisteatro.blogspot.com/2011/06/sessao-da-classe-apresenta-memoria-do_10.html.
Eu recomendo.
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[1] Lenda de Scherazade que seduz o rei com suas histórias o que o impede de mandá-la assassinar.
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