Quando escolhi o lugar parecia bom. Bem na frente, meio central, na platéia baixa do teatro do CIEE, mas, bastou olhar para o palco para constatar que estava perto demais. Torci para que isso não prejudicasse minha visão das cenas e deu certo.
No palco, uma grande caixa de madeira. Panos pendurados pelas “paredes”. Uma luz indireta, suave, tornando o ambiente meio poético. Anjos mascarados fazem movimentos suaves que mais lembravam um ballet. Uma música de piano agradável acompanhava os atores. Ou seriam bailarinos? Vim assistir a um espetáculo de dança? Nada contra. Mas, minha expectativa era outra. Assim, fiquei feliz quando vieram as primeiras palavras. Um dos atores manipulava um boneco e contava a sua história de preconceito, de discriminação, de solidão familiar por ser ele um anão! Poderia até ser engraçado, mas, não. O jeito contundente e sofrido dele fazer seu relato elimina qualquer ruído da platéia. Muito menos risos, embora em alguns momentos ocorram falas divertidas. Pronto. Já fui conquistada. A expressividade do ator, seu tom de voz, seu jeito absolutamente perfeito de dizer o texto me arrebatou. Como se não fosse o suficiente convencer-me da fala daquele menino-anão, ele ainda fazia as vozes da mãe, do pai, da irmã. Como é bom ver alguém se apropriar tão bem das palavras e das emoções que surgem com elas. Sem titubear. Sem nenhum vacilo. Fala de sentimentos, mas, nos apresenta algo com começo, meio e fim e é assim que passamos para o próximo monólogo.
Outra proposta interessante. Os anjos mascarados trazem um pequeno marionete. Colocam em uma posição deitada. Logo em seguida, uma das atrizes começa a falar do suicídio do marido. Mas, não explicitamente. Vai nos introduzindo ao que levou aquele momento. De uma maneira que nos sentimos lá, com ela, “vemos” o que ela fala e entendemos o seu drama. No meio de outro texto profundamente bem escrito, frases poéticas, profundas, filosóficas: “não saber é que torna a vida possível”. Toda a platéia segue em total silêncio e olhos vidrados. Outra frase: “Nenhum de nós rompeu aquele acordo sem palavras”. Palavras, palavras, palavras. Nada mais. Mas, estas tem movimento, ganham o espaço, preenchem o teatro. Outra vez compartilhamos de tudo que aconteceu com aquela personagem.
Um dos anjos coloca vários copos sobre a caixa. O ator que fará o terceiro monólogo os espalha e começa a contar seu sonho com a mãe. Mais uma vez, frases que merecem ser registradas: “que dificuldade você tem para ser feliz!”. Outro ótimo texto. O alcoolismo na família. O ritmo das palavras se mantém. O nível de expressividade também. Há uma homogeneidade na atuação de todos eles. “Naquele instante eu fui feliz”. “Só as famílias felizes querem ficar registradas”. “Sofrendo numa confusão de amor e ódio”. “Tinha um poder maior sobre ela do que qualquer sensatez”.
Mesmo que a proposta cênica seja criativa e diferente, a maneira como os anjos foram colocando as máscaras na medida em que os monólogos iam acontecendo, indicam que falta apenas um. É interessante esta questão de códigos. Mesmo que não previstos, há uma lógica que nos tranqüiliza, que nos faz sentir inteligentes. Para o último, abrem-se espelhos. Outro texto brilhante. “Eu entendi que a nossa cumplicidade só existia na minha imaginação”. Fala da burocracia da morte. Eu que vivi exatamente isso com a morte do meu irmão e que vi meu pai fugir dela, doando seu corpo para estudos, entendo perfeitamente. “Não importa quanto tempo se passou. O amor é o mesmo. Eu sou a mesma”. “Vamos calar em um silêncio maior do que qualquer palavra”. De novo a morte. Sob outra ótica. Outro vínculo. A mesma tristeza. O mesmo desespero e o mesmo talento de todos os outros para dizer o texto. Longo por sinal, como os demais. E a platéia imóvel, absorvendo cada sílaba, cada pausa que vai nos calando fundo e só se rompe ao final com os gritos de bravo e o barulho das palmas.
PS: Como disse no início, não gosto de me informar sobre o que vou ver. Só chegando em casa fico sabendo que o espetáculo é uma adaptação dos contos de Lya Luft, com o mesmo nome. Ah...
Ficha técnica
Direção: Moacyr Goes
Elenco: Carla Rosa, Giselle Lima, Augusto Garcia, Leon Góes
Assistência de direção: André Chevitarese
Direção musical: Ary Sperling
Cenografia: Paulo Flaskman
Figurinos: Inês Salgado e Fúlvia Costalonga
Iluminação: Paulo César Medeiros
Direção de produção: Companhia Escola 2 Bufões
Duração: 90 min
Crédito fotos: Renata Dillon e Rogério Resende
Me identifiquei muito com teu texto. Foi exatamente assim que eu me senti na peça. Por enquanto, foi a que eu mais gostei desse poa em cena.
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