Wednesday, September 16, 2009

O silêncio dos amantes e o mudismo da platéia


Não gosto de ler sinopse, nem de tomar conhecimento de nenhuma informação antes de ir ao cinema ou ao teatro. Quando muito aceito a recomendação de alguém. No Porto Alegre Em cena não foi muito diferente. Comprei meus ingressos pela escolha dos teatros, das datas, do lugar de onde vinham os grupos. Como estava fora da cidade, ontem fui assistir ao meu primeiro espetáculo do Festival: o silêncio dos amantes.

Quando escolhi o lugar parecia bom. Bem na frente, meio central, na platéia baixa do teatro do CIEE, mas, bastou olhar para o palco para constatar que estava perto demais. Torci para que isso não prejudicasse minha visão das cenas e deu certo.

No palco, uma grande caixa de madeira. Panos pendurados pelas “paredes”. Uma luz indireta, suave, tornando o ambiente meio poético. Anjos mascarados fazem movimentos suaves que mais lembravam um ballet. Uma música de piano agradável acompanhava os atores. Ou seriam bailarinos? Vim assistir a um espetáculo de dança? Nada contra. Mas, minha expectativa era outra. Assim, fiquei feliz quando vieram as primeiras palavras. Um dos atores manipulava um boneco e contava a sua história de preconceito, de discriminação, de solidão familiar por ser ele um anão! Poderia até ser engraçado, mas, não. O jeito contundente e sofrido dele fazer seu relato elimina qualquer ruído da platéia. Muito menos risos, embora em alguns momentos ocorram falas divertidas. Pronto. Já fui conquistada. A expressividade do ator, seu tom de voz, seu jeito absolutamente perfeito de dizer o texto me arrebatou. Como se não fosse o suficiente convencer-me da fala daquele menino-anão, ele ainda fazia as vozes da mãe, do pai, da irmã. Como é bom ver alguém se apropriar tão bem das palavras e das emoções que surgem com elas. Sem titubear. Sem nenhum vacilo. Fala de sentimentos, mas, nos apresenta algo com começo, meio e fim e é assim que passamos para o próximo monólogo.

Outra proposta interessante. Os anjos mascarados trazem um pequeno marionete. Colocam em uma posição deitada. Logo em seguida, uma das atrizes começa a falar do suicídio do marido. Mas, não explicitamente. Vai nos introduzindo ao que levou aquele momento. De uma maneira que nos sentimos lá, com ela, “vemos” o que ela fala e entendemos o seu drama. No meio de outro texto profundamente bem escrito, frases poéticas, profundas, filosóficas: “não saber é que torna a vida possível”. Toda a platéia segue em total silêncio e olhos vidrados. Outra frase: “Nenhum de nós rompeu aquele acordo sem palavras”. Palavras, palavras, palavras. Nada mais. Mas, estas tem movimento, ganham o espaço, preenchem o teatro. Outra vez compartilhamos de tudo que aconteceu com aquela personagem.

Um dos anjos coloca vários copos sobre a caixa. O ator que fará o terceiro monólogo os espalha e começa a contar seu sonho com a mãe. Mais uma vez, frases que merecem ser registradas: “que dificuldade você tem para ser feliz!”. Outro ótimo texto. O alcoolismo na família. O ritmo das palavras se mantém. O nível de expressividade também. Há uma homogeneidade na atuação de todos eles. “Naquele instante eu fui feliz”. “Só as famílias felizes querem ficar registradas”. “Sofrendo numa confusão de amor e ódio”. “Tinha um poder maior sobre ela do que qualquer sensatez”.

Mesmo que a proposta cênica seja criativa e diferente, a maneira como os anjos foram colocando as máscaras na medida em que os monólogos iam acontecendo, indicam que falta apenas um. É interessante esta questão de códigos. Mesmo que não previstos, há uma lógica que nos tranqüiliza, que nos faz sentir inteligentes. Para o último, abrem-se espelhos. Outro texto brilhante. “Eu entendi que a nossa cumplicidade só existia na minha imaginação”. Fala da burocracia da morte. Eu que vivi exatamente isso com a morte do meu irmão e que vi meu pai fugir dela, doando seu corpo para estudos, entendo perfeitamente. “Não importa quanto tempo se passou. O amor é o mesmo. Eu sou a mesma”. “Vamos calar em um silêncio maior do que qualquer palavra”. De novo a morte. Sob outra ótica. Outro vínculo. A mesma tristeza. O mesmo desespero e o mesmo talento de todos os outros para dizer o texto. Longo por sinal, como os demais. E a platéia imóvel, absorvendo cada sílaba, cada pausa que vai nos calando fundo e só se rompe ao final com os gritos de bravo e o barulho das palmas.

PS: Como disse no início, não gosto de me informar sobre o que vou ver. Só chegando em casa fico sabendo que o espetáculo é uma adaptação dos contos de Lya Luft, com o mesmo nome. Ah...

Ficha técnica
Direção: Moacyr Goes
Elenco: Carla Rosa, Giselle Lima, Augusto Garcia, Leon Góes
Assistência de direção: André Chevitarese
Direção musical: Ary Sperling
Cenografia: Paulo Flaskman
Figurinos: Inês Salgado e Fúlvia Costalonga
Iluminação: Paulo César Medeiros
Direção de produção: Companhia Escola 2 Bufões
Duração: 90 min

Crédito fotos: Renata Dillon e Rogério Resende

1 comment:

  1. Me identifiquei muito com teu texto. Foi exatamente assim que eu me senti na peça. Por enquanto, foi a que eu mais gostei desse poa em cena.

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