Até ver Natalício Cavalo eu achava que “peça” e “espetáculo” eram
sinônimos. Não acho mais. Quando uma peça é capaz de nos envolver nos primeiros
minutos, apresenta atores com um mesmo nível (alto) de interpretação que cantam,
dançam, trocam de papéis, estamos falando de um espetáculo. Mas, para ser
sincera preciso dizer que sempre que vejo Heinz Limaverde no palco ele me conquista.
Então, assim que ele se dirige ao público e começa a dizer o que vamos ver e
fala do jeito mais tranquilo e doce que o protagonista vai morrer, eu já fico
impressionada. Depois, quando todas as luzes se apagam, eu seguro a folha que
me entregaram na entrada, tentando lembrar o que fiz naquela tarde, nas últimas
semanas, vou sendo conduzida por eles a uma “regressão” da minha própria existência.
Uma coisa é certa: eu não estava preparada para a beleza dessa história contada
pela Cia Rústica e dirigida por Patrícia Fagundes.
Já havia escutado comentários de que
o espetáculo falava da morte. Não para mim. Nem para eles. Como consta no
programa: é uma comemoração à vida. A partir de alguém que, eles mesmos dizem,
não é famoso, nem teve uma vida perfeita ou fez coisas extraordinárias. Ao
contrário, é sobre as experiências de um ser humano qualquer que se questionou várias vezes sobre sua
existência, que “desperdiçou” tempo se envolvendo com várias mulheres, gerando
várias outras vidas. Que, se não era um mau caráter, jogava, bebia, perdia mais
do que ganhava dinheiro. Então, o que tem de especial? O que me fez ir às lágrimas?
Talvez porque eu tenha ido ver a peça na
mesma semana em que vi duas borboletas e me perguntei se elas teriam noção de
que em pouco tempo estariam mortas, mas
que ainda bem que elas estavam ali para embelezar o mundo. Ou porque tenha sido
no momento em que a Xuxa fez a mesma idade que eu e nos 50 anos dela tornou-se
conhecida em todo o país, construiu uma fundação, ajudou milhares de pessoas,
enquanto eu... Ou então, porque meu pai, que se expressava tão pouco, ouvia
música gaudéria o dia todo. Ou ainda porque meu irmão tenha vindo almoçar aqui
em um Domingo e partido para sempre naquele mesmo dia depois de um mal-estar. Talvez
também porque, quando eu tinha 30 anos, recebi um diagnóstico de uma doença
rara e incurável que me colocava em risco de derrame cerebral e ataque
cardíaco. Quer dizer, é sobre isso que a
peça trata. Sobre a vida, sobre a morte. Sobre os sonhos, sobre as perdas. Sobre
o fato de sermos todos sobreviventes.
É forte a presença dos elementos
da cultura gaúcha, a minha cultura. Cavalos, botas, chapéus... Assim como a
presença das mulheres que não são colocadas aqui em segundo plano. Ao contrário.
Destacam-se pela beleza dos gestos, personalidade, sensibilidade. E assim, palavras,
misturadas a um figurino impecável de Daniel Lion, imagens de fotos, jornais,
cartas, vários elementos jornalísticos, tudo isso me faz gostar ainda mais e
sair dali procurando confirmações de que Natalício Cavalo de fato existiu (ou
não). Mas não é preciso ser dessa área para achar impressionantes esses
registros, aparecendo assim, em grandes telas que também fazem um jogo de
sombras do próprio ator no palco, ora preenchendo a foto, ora servindo de fundo para o personagem. De
qualquer forma, poético. Enquanto, no palco, os atores, Heinz Limaverde, Lisandro Belloto, Marcelo
Mertins, Marina Mendo, Priscilla Colombi, Rossendo Rodrigues, dão vida às
palavras escritas. Há uma cronologia, mas também há cortes. Há um roteiro
cheirando a fantasia, entremeado de citações, de datas. Há a explicação técnica
do que se trata uma gineteada. Há um tom dramático. Há partes que provocam o
riso. Mas mais do que tudo, há os corpos dos atores fazendo movimentos
integrados, deslocando partes do cenário de Rodrigo Shalako, nos levando a
filosofar sobre o tempo, o envelhecimento.
Tudo vai acontecendo de um jeito
sincronizado com um ritmo que vai na contramão do tema pesado que, a princípio,
está sendo tratado. E não dá para
ignorar, trilha sonora de Arthur de Faria, introjetada com naturalidade,
costurando os atos que nos perturbam pela sua simplicidade. Afinal, sabemos que
eles estão se referindo a Natalício Cavalo, esse “marginal do sucesso”, mas
podia ser meu pai, meu tio, eu mesma. Ah, e quase ia esquecendo a figura da morte.
Essa que aparece em tantas cenas, com máscaras, de um jeito quase divertido e
que negocia com os atores em cena, mostrando que ela não tem pressa, pois,
afinal, todos sabemos, é só uma questão de tempo. Aliás, por falar nisso,
sabendo que “uma vida não cabe no tempo de uma peça”, vários eventos da
existência de Natalício Cavalo são citados um atrás do outro e nos levam para
uma forma simbólica de vivenciar sua morte. E seria triste, se ele mesmo não
aparecesse falando sobre o que houve, sem a angústia de toda a sua vida, mas
querendo deixar algo mais que não permita esquecê-lo. Mas já não era mais
necessário. A Cia Rústica me fez crer que Natalício Cavalo de fato existira e
sendo um personagem que relembra toda e qualquer pessoa, tanto ele como o espetáculo
são inesquecíveis.
Simplesmente perfeito! Assisti no dia 06/04 e se possível assistiria muitas outras vezes, a peça me prendeu do inicio ao fim, me emocionou, me fez rir... Muito envolvente!
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