Antônio Holfeldt
A decisão de montar um texto do dramaturgo alemão Heiner Müller, recentemente falecido (1929-1995), é sempre uma decisão radical. É como um salto do artista de circo, sem rede de segurança. Porque as peças de Müller não apresentam nenhum ponto de apoio, ou de referência, para o encenador. Por vezes, existe algum aspecto paródico a um texto dramático anterior, mais conhecido, mas isso é uma espécie de trompe oeil: quando a gente chega ali pertinho, verifica que aquela aparente referência é um engodo.
Aliás, de aparências e, neste sentido, de enganos, vive a peça Descrição de uma imagem (1984, edição em livro da Paz & Terra), com cujo projeto de montagem a jovem diretora Júlia Rodrigues ganhou um concurso e com isso pôde concretizar a ideia. Vemo-la, agora, em cena, no espaço da Sala Álvaro Moreyra, cuja proximidade é mais um desafio.
Irene Brietszcke falou em “teatro sem drama”. Na verdade, a fala do(s) personagens funciona como uma espécie de câmara em movimento de looping muito lento: o olhar se desloca vagarosamente por uma superfície, mas à medida que ele corre pela imagem ou dela se aproxima, quanto mais próxima mais confusa fica a imagem. Porque aquilo de que se fala são apenas aparências, como se (herança platônica?) o dramaturgo e/ou o personagem não acreditasse em seus sentidos. Assim, embora a descrição se inicie com uma certa segurança, logo perde este passo e se distrai em possibilidades de interpretações sobre o que seja que pareça (ou não) ser.
Estamos diante de um assassinato sexual, que se segue a um estupro? Ou frente a um radical relacionamento com uma entrega total de ambos os parceiros, semelhante ao filme Império dos sentidos?
Pode-se ver, no YouTube, imagens de uma outra montagem, recente, de grupo paulista. Bonita. Felizmente, Júlia Rodrigues resolveu seguir seu próprio caminho. O espetáculo do grupo Barra Quatro é talvez mais denso e menos poético, mas por isso mesmo é capaz de recuperar certa dramaticidade de que Müller parece querer se desvencilhar, sem alcançar, porque esta dramaticidade não se encontra no acontecimento em si, mas sim no próprio olhar de quem assiste ou observa a realidade em seu entorno.
Müller inovou, sob muitos aspectos, a cena contemporânea. Mas, sobretudo, chamou a atenção para o jogo de aparências que caracteriza a vida humana cotidiana. Aquilo que se pensa ver não é necessariamente o que ocorre etc.
Thiago Pirajira, Kayane Rodrigues e Kyky Rodrigues (irmãs, gêmeas? Pela parecença que ajuda neste jogo sugestivo) personificam os dois personagens (uma delas parecendo ser a sombra da outra (outra referência platônica?)) O cenário de Élcio Rossini valoriza o jogo de aparências com os véus que são esticados ao máximo, quando “vestidos” pelos personagens. Os figurinos de Letícia Pinheiro e Isadora Fantin são leves e “neutros”, de maneira a não atrair a atenção do espectador, que deve se concentrar nos personagens e no espaço, deixar-se levar por efeitos sinestésicos da trilha sonora de Ricardo Pavão e da iluminação de Bathista Freire, com focos de luz raramente incidindo diretamente sobre os personagens, criando um ambiente de lusco-fusco que mais ajuda a iludir e a sugerir. A preparação corporal coordenada por Dagmar Dornelles parece ser seguida fielmente pelos intérpretes, que se movimentam calculada, ainda que não artificialmente, movendo-se com lentidão na cena, como numa cena ralentada que nos permite acompanhar os detalhes dos movimentos e das modificações.
Eis um espetáculo raro, merecidamente premiado desde o início de sua concepção. Espetáculo a ser não apenas assistido quanto refletido. Um bom momento da cena porto-alegrense na atual temporada.
Publicado no Jornal do Comércio 13/05/2011
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