Perfil - Edélcio Mostaço, Professor do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Teatro
Doutor em Teatro pela USP (Universidade de São Paulo),
Edelcio Mostaço é professor da graduação e pós-graduação
do CEART/UDESC e atua principalmente nos temas:
história cultural e teatro, crítica e recepção,
intertextualidade cênica, teatro brasileiro,
pós-modernismo cênico, vida profissional
1) Há quanto tempo ministra aulas na Universidade e em quais disciplinas mais trabalhou? Que aulas ministra atualmente?
Prestei concurso para a UDESC em 2002. Na graduação, trabalhei com vários estágios de História do Teatro, Crítica e Estética. Porém já cheguei a ministrar Cenografia, porque a professora responsável estava em capacitação. Nos últimos anos tenho optado em ficar apenas com Estética, disciplina com a qual tenho maior afinidade. Na pós-graduação dei vários cursos diferentes, inclusive o Seminário de Pesquisa.
2) Falando um pouco sobre uma das suas áreas de trabalho, qual seria, na sua opinião, a finalidade da crítica?
A crítica de arte representa um depoimento de alguém que esteve presente ao evento artístico ou,
no caso de uma análise a posteriori, tenha se debruçado sobre um artista, um período ou um determinado tipo de técnica ou questão, por exemplo. No caso da crítica de teatro efetuada em jornal, um ramo do jornalismo opinativo, ou seja, alguém que assina uma coluna a respeito de certo assunto. Sua finalidade é dialogar primeiramente com o leitor, e, secundariamente, com os artistas envolvidos no evento. Comentário ligeiro, opinativo e qualificado, é o que cabe nos atuais espaços disponíveis na grande imprensa; não cabendo ali o exercício do ensaísmo ou uma análise muito técnica, impossível de ser acompanhada pela média dos leitores. Dentro dessas circunstâncias, a crítica visa informar o leitor sobre o contexto onde o espetáculo nasceu, foi produzido e foi apresentado, tentando, na medida do possível, expandir sua apreensão do mesmo.
Estou falando da crítica bem intencionada, é claro. Há quem use o espaço para desagravos ou comentários pessoais alheios à finalidade não apenas da crítica como da imprensa em modo amplo.
3) Que motivos contribuem para a crítica teatral ocupar menos espaço em veiculos midiáticos de grande circulação? O povo tem tido menos interesse no teatro?
A pergunta é um pouco ambígua, uma vez que também a imprensa é mídia, assim como o rádio, a TV e a internet. De qualquer modo, é preciso partir de algumas evidências: com a desagregação da sociedade de massa, entre os anos 1950 e 1960, a própria mídia em geral conheceu uma expansão jamais imaginada, adentrando o que hoje é conhecido como globalização, a erupção da "sociedade do espetáculo", uma irremediável imersão nos avatares do capital. Ou seja, a mercadoria impôs-se sob todos os formatos e sob todos os campos, inclusive e principalmente sobre os setores culturais. O que ainda existia enquanto artesanato ou livre exercício caducou e assitimos a ascenção das empresas especializadas, em cada uma das fases que intermediam a chamada matéria prima e o consumidor final. Temos assim uma proliferação de atravessadores: "gerentes", "nichos de atuação", "engenharia de produto" etc etc, uma enormidade de eufemismos para qualificar esse adensamento de manipulações que o produto cultural sofre.
Os veículos midiáticos acompanharam essa progressão em larga escala e, simultaneamente, necessitaram aumentar receitas para dar conta da sofisticação cada vez maior que seus produtos deveriam possuir para sobreviver nesse mercado altamente concorrencial. O aumento de receitas veio da publicidade e não da expansão do número de leitores. Se a lógica mercantil já existia, a partir de então ela tornou-se soberana, ditando o que deve ou não circular sob o formato de notícia. Dou um exemplo: uma grande indústria farmacêutica vai lançar um novo medicamento para combater dor no joelho. A estratégia de marketing se in icia com a divulgação junto aos órgãos de imprensa de uma série de doenças que acomentem os joelhos. Você vê isso na Veja, no Fantástico, na Folha, no site do MSN etc. Três meses depois começam a circular os anúncios do tal remédio milagroso que cura qualquer problema de joelho. A população foi, nesse caso, "sensibilizada" para correr em massa às drogarias.
Nesse ambiente altamente industrializado de notícias, informações e opiniões de especialistas, os números são tomados em milhões, em todos os sentidos da expressão. Razão pela qual falta espaço para tudo o que não se mova nesse padrão industrial de produção e consumo, como é o caso da arte, do teatro, do artesanato, da cultura imaterial etc.
Não sei se respondi a pergunta, mas tentei contextualizar o ambiente no qual assistimos, desde os anos 1970, um paulatino desaparecimento da crítica de arte nos grandes veículos de comunicação. E o surgimento de canais alternativos pa ra esse tipo de atividade, como os blogs e sites de internet, mas isso é outro capítulo...
4) Assistir a uma peça com o intuito de criticá-la certamente exige atenção apurada. Como você estabelece este olhar e o fazer a crítica em seguida?
É indispensável não dormir durante a apresentação... e procurar reunir a maior quantidade possível de informação prévia sobre o espetáculo. Costumo dizer aos alunos que assisto um espetáculo com um olho no palco e outro na platéia, como modo de tentar apreender, simultaneamente, os dois lados da equação ali formulada. Porque, afinal de contas, o crítico tem de levar em conta a reação da platéia. Falo isso dentro do contexto da crítica militante, diária, na qual o crítico chega a assistir mais de uma apresentação por dia (eu já cheguei a ver quatro peças num só dia e tinha cinco horas para escrever sobre elas).
Nesse nível de atuação, a experiência conta muito; além de um treino especial de memória, concentração e modo de manipular as informações no momento d e escrever. Isso nenhuma escola ensina, é o chamado traquejo adquirido no dia a dia.
Mas numa situação normal, a coisa é mais lenta. Você vê a peça num dia e dispõe de 24 ou 48 horas para entregar o texto, o que permite certa absorção mais lenta e algum trabalho de decantação, importantes para o ato reflexivo. De qualquer modo algumas condições prévias são indispensáveis ao crítico: cultura geral, cultura artística geral e particular, permanente atualização de informações em seu campo de trabalho, capacidade de síntese, estilo correto e claro, pensamento telegráfico.
A crítica dentro da academia, felizmente, se move a partir de outros padrões, bem mais lentos e bem menos sufocantes.
5) Você acha que a crítica interfere no fazer teatral? O artista absorve as opiniões do crítico sobre o que faz e costuma mudar sua forma de realizar o trabalho?
Depende muito do crítico e do artista, do modo como o arti sta se relaciona com a crítica. Se a coisa for levada em nível subjetivo, existem poucas chances de algo ocorrer. Mas se o artista respeita a opinião do crítico e possui uma relação menos subjetivada com seu trabalho, é frequente que ele mude ou procure se reorientar num trabalho posterior.
6) Existe um certo medo de "policiar" o trabalho dos artistas entre os críticos de teatro e, por isso, muitos deixam de achincalhar uma peça de um "figurão" ou procuram falar bem de um novo artista para procurar incentivá-lo?
Pessoalmente, não saberia o que responder, pois nunca vivi situações dessa natureza. Sempre
falei o que quis sobre qualquer artista de teatro que assisti, sem distinguir se era veterano ou novato. Faço apenas uma observação: criticar não é achincalhar. Nesse viés, entramos em outro departamento que não o da crítica de arte.
7) Existe uma estética teatral que, de certa maneira, rege a produção contemporânea do teatro brasileiro? Qual seria?
Não, ainda bem. Nada mais chato do que se ver dez peças iguais. Se, por um lado, não existe uma corrente estética dominante, por outro existem certos modismos, como, por exemplo, a "onda de fumaça" (toda peça tinha uma cena de névoa); a onda de nudez; de contra-luz na cena central; de coros cruzando a cena (imitação servil do Antunes); etc. Ultimamente está ressurgindo o "teatro de caixotinho", expressão que emprego para caracterizar aquelas peças de propaganda política em porta de fábrica dos anos 1960, feitas em cima de caixotes de cerveja.
8) Como você analisa a evolução das estéticas teatrais? Que tipo de fatores e ntram em consideração na construção de uma estética ou poética em determinado momento histórico?
Isso não é uma pergunta, mas um projeto de tese. Só respondo se você me der o site inteiro como espaço.
9) Uma de suas linhas de pesquisa aborda as infiltrações do tropicalismo no teatro. Como se observou essa influência da tropicália nas produções teatrais e em que período ocorreu?
Outra resposta longa. O tropicalismo foi um produto de época, marcado pelo contexto onde eclodiu; ou seja, os fatores sócioculturais e políticos daquele momento foram determinantes para que ele adquirisse o tônus que manifestou (meados dos anos 1960, ditadura militar, luta armada, fim do pacto populista). Houve o recurso de juntar a tecnologia de ponta com o artesanato, deglutindo influências e reprocessando dados. Foi um momento de antropofagia explícita. Existem, no meu entender, três encenações-chave para se situar o tropicalismo no teatro: "O rei da vela" (1967), Roda viva" (1968) e "Na selva das cidades" (1969), todas encenadas por José Celso Martinez Corrêa. A primeira é mais declaradamente política, pois apresenta o Brasil como uma grande hipoteca ao capital internacional, comandada por uma burguesia amoral e estúpida, no jogo social do salve-se quem puder. O espetáculo era muito violento contra esses padrões que, até hoje, ainda se manifestam aqui e ali (vide as circuntâncias que levaram à prisão o governador Arruda no DF).
"Roda viva" enfoca a vida de um cantor que, para sobreviver, necessita mudar de estilo por força da gravadora: passa de "cantor de protesto" a "cantor de iê-iê-iê", o gênero do primeiro Roberto Carlos. Ou seja, examina a situação da cultura num país periférico que, ou muda e adere à hegemonia, ou tem de morrer; que é o que ocorre ao final com o tal cantor. A terceira é um texto do jovem Brecht que enfoca a luta entre um rapaz pobre, vendedor de livraria, e um poderoso gangster de Chicago, dono de bordéis e contrabantista. A luta ocorre porque o gangster quer comprar a opinião do rapaz, e ele se recusa a vender a única coisa que possui de próprio. Há um teor metafísic o e trágico em jogo, pois trata-se da anulação da subjetividade o móvel do conflito.
As três peças, como se vê, falam do Brasil daquele momento, percebidas por diferentes olhares e distintos enfoques, mas tendo em comum a densidade dos conflitos abarcados, sempre envolvendo a esfera cultural. O tropicalismo foi esse intenso movimento de intelecção do Brasil à luz de suas intensidades, qualidades e diferenças. Roberto Schwarz tornou corrente a expressão "idéias fora do lugar", para flagrar a contradição entre o que se pensa e o que de fato existe numa dada situação. O Brasil, nesse caso, é uma idéia fora do lugar, pois não se ajusta a nenhuma das interpretações convencionais sobre ele. Há quem veja nessa metamorfose ambulante um problema. Eu, ao contrário, vejo uma virtude; pois reafirma a força do projeto frente à fragilidade da identidade. A reviravolta quando se espera o frente a frente; o outro lado quando se espera o mesmo; o desconhecido quando se pensa que se encontrou o próprio. Ou, em termos psicanalíticos, a sombra de Dionisos. O tropicalismo foi uma belíssima chacoalhada dionisíaca na cultura brasileira daquele momento.
10) O que você poderia nos falar sobre seu último projeto de pesquisa que aborda as implicações atuais do discurso antropofágico (termo emprestado dos modernistas) na produção contemporânea?
Penso que a antropofagia é um dos poucos traços genuinamente brasileiros enquanto paradigma cultural. A força dos ataques que sofreu revelam a medida de sua energia e presença. E também de seu triunfo, sob uma multip licidade de nomes hoje correntes: interculturalismo, hibridização, fronteirização, formação dialógica, semiosfera etc. São esses processos artísticos e os procedimentos que lhe são simétricos que constituem meu projeto de pesquisa, voltado especificamente para a cena contemporânea.
11) Não pude deixar de perceber um ponto curioso em seu currículo que trata de uma formação que obteve em acupuntura e medicina tradicional chinesa. Como surgiu esse interesse com práticas médicas orientais? Você também trabalha na área atualmente?
A certa altura de minha vida, também recebi "um chamado" do apelo natureba. Era o final dos anos 80 e eu, em paralelo às minhas atividades teatrais, enveredei pelas terapias alternativas. Iniciei uma formação em orgonoterapia (baseada em Reich) e, no meio do caminho, percebi que o buraco era mais embaixo: a energia só poderia ser manipulada sob intervenção mais diret a. Desisti de Reich e fui fazer um curso de medicina tradicional chinesa. Tornei-me acumputurista, abri consultório e escrevi uma monografia clínica. Desde que mudei para Florianópolis nunca mais toquei numa agulha, pois a UDESC absorve todas as minhas energias. Não pretendo voltar à clínica, mas dessa formação intensa r estou certo alargamento de consciência, certa compreensão holística, certo apelo ao pensamento figural e ideogramático, que constituem a base de todas as medicinas tradicionais.
Fonte: Centro de Artes, 29 de Março de 2010
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