Wednesday, December 07, 2011

Overdose de talento e emoção

Dedicado ao meu sobrinho 
Pedro Henrique Mello que já está na Austrália *.

Que a presença do Théatre du Soleil ia ser um evento, muita gente já sabia há meses. E mesmo que o fato de ser em Canoas tenha causado um certo descontentamento inicial, as pessoas começaram a se mobilizar para ir até o parque Eduardo Gomes. Eu, felizmente, tenho uma amiga que mora na cidade. Fui sua primeira chefe há mais de dez anos e, agora, lá estávamos juntas em minha primeira vez para ver o grupo francês. Em 2007, cheguei a comprar os ingressos, mas trabalhando na Bienal ficava exausta. Desta vez, fui para a estreia.
Ao chegar no local, esbarro em um grande espaço de lona escrito Os náufragos da louca esperança. Fui cruzando com muitas caras conhecidas, amigos, artistas, políticos e Luciano Alabarese que eu só vi de longe mas a quem devo meus melhores momentos no teatro.
Na entrada, os camarins expostos com todos se preparando para as cenas já são um espetáculo à parte. Logo em seguida, um dos atores me cumprimenta, pega o meu ingresso e fala comigo com sotaque. Eu dou boa noite em francês e ele me responde: au milieu à droite (no centro à direita). Fico satisfeita por essa bobagem pois uma língua é para praticar com os nativos deste país que tanta influência tem em minha vida.
Ariane Minouchkine fala com o público, comentando o esforço, inteligência, a boa-vontade de todos para a realização do espetáculo. Acaba corrigindo o tradutor, ao perceber que ele não disse uma das palavras que usou, e recebe palmas.
Logo percebo que o palco é enorme. Como sempre, não li nada a respeito, nem o programa que foi entregue na entrada para poder ter e relatar minhas próprias impressões. Não tenho a pretensão de tentar descrever o que vi. Seria perda de tempo e, com certeza, o resultado: um fracasso. Mas vou comentar porquê acredito que essa companhia mereça todo esse destaque no mundo.
Para quem se interessa por teatro, os focos são múltiplos. Todos os atores (e são muitos) ficam em cena praticamente todo o tempo. O cenário inclui diversos elementos e, por fazer referência a uma filmagem cinematográfica, são usados diversos painéis que o compõem. Uma aula de metalinguagem. Uma mescla absolutamente perfeita entre duas artes que eu amo que só Ariane poderia fazer.
Minha amiga perguntou se iria ter legenda. Mal sabíamos nós que sim e todo tempo. Afinal, trata-se da representação de um filme mudo. Só essa habilidade técnica dos atores de nos mostrar milhares de expressões sem usar a voz já teria valido a pena. Porém, o que me impressionou mais foi ver tudo que os atores faziam. Eles abrem, fecham, puxam, esticam, levantam, abaixam, tiram, botam com uma rapidez, uma eficiência e uma agilidade que nem os serviços de urgência médica do primeiro mundo possuem. E tudo é feito de forma sincronizada. Sem sujar a cena, nem cansar nossos olhos. Lá pelas tantas, percebo um ator deitado no canto do palco apenas puxando a corda que balança a geringonça que faz a “neve” cair ininterruptamente. E me preocupo com o pulso da “cinegrafista” que movimenta a manivela da câmera durante quase todo o espetáculo. Quando o cansaço vem já no final, respiro fundo e penso na energia que eles precisam para fazer tudo aquilo.
A música executada ao vivo por Jean-Jacques Lemêtre é um elemento a parte. Introduz, sublinha e corta cenas. E como se tudo isso não bastasse, não posso esquecer de citar os aspectos ideológicos trazidos: as questões discutidas em cena sobre territórios, fronteiras, poder, prepotência, disputa, guerras e tudo isso ainda usando o humor que é evidente na presença constante de um pássaro em todas as cenas. Quer dizer, quase todas. Em um determinado momento, esse não aparece e me pego pensando: “onde está o pássaro?” Além disso, vários atores assumem o personagem do vento que mexe com as roupas, levanta casacos, dificulta os deslocamentos. E esta é uma atividade tão presente, tão constante que lá pelas tantas o “diretor” se vê obrigado a gritar: “vento solta o fio!”.
Saio de lá certa que acabei de participar de um momento único e que ficará na minha memória para sempre e penso: então, teatro é isso. Um ator. Muitos. Um “palco” convencionado pelos atores. O edifício teatral do Teatro São Pedro. Sem música. Musicais. Sem cenário. Toneladas de móveis e outros objetos. Com filmes, internet, fotografias. Só texto. Inúmeras possibilidades. Infinitas sensações. No teatro de Mnouchkine tudo é superlativo basta ver a quantidade de atores, patrocinadores, técnicos envolvidos neste espetáculo, além, é claro das plateias lotadas em todas as apresentações. Se eu precisasse resumir tudo que vi usaria uma frase de um dos personagens: “temos que ousar complicar”. E, enquanto pudermos compartilhar tudo isso, acredito profundamente que a esperança não naufragará.


*Um dos locais para onde o Louca esperança se dirige.

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